Andreza Silva
Pereira
O presente artigo tem
como objetivo propor reflexões teóricas acerca da intervenção poética realizada
no dia 20 de maio de 2014 pela turma ingressante no referido ano no Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) da Universidade
Federal de Mato Grosso- UFMT. A proposta foi uma das atividades previstas na
disciplina de “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I”, integrando também as ações do
Coletivo artístico “À Deriva”.
A intervenção foi feita
no espaço chamado “Morro da Luz” , sendo nomeada de “Morro de Luz”. O morro,
cujo nome oficial é “Parque Antônio Pires de Campos”, está situado no centro da
capital cuiabana, tendo sido inaugurado em 1925 e tombado como patrimônio
histórico municipal em 1983. O primeiro parque urbano do Centro-Oeste
brasileiro ficou conhecido como Morro da Luz por abrigar uma subestação que
fazia distribuição de energia elétrica a partir do final da década de 1920 para
a cidade. O parque reúne uma extensa área verde e trilhas de caminhada. Devido
à localização e grande arborização, sua temperatura média é de 3 a 4º C menor
que a do centro de Cuiabá.
Com o passar das
décadas, o lugar passou a ser desassistido pelo poder público. Não há registros
que possam precisar quando, mas o espaço foi tornando-se um ponto em que
ocorrem práticas de venda e uso de drogas. A população em geral deixou de
frequentar o morro, que se fez conhecido pelo risco que apresentava aos
transeuntes. O lugar não mais recebeu a manutenção devida do poder público seja
por meio dos serviços de iluminação, limpeza ou policiamento.
O
Morro da Luz como espaço de intervenção
De forma coletiva e
colaborativa, o grupo de estudantes juntamente com a professora Maria Thereza
Azevedo reconheceram no quadro dado um caminho para uma potencial intervenção
poética urbana. A situação permitia e ensejava uma prática interventora dessa
natureza, pois como nos expõe Barja, "Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural "(BARJA, 2008, p. 214).
Assim foi feito. Os acadêmicos se mobilizaram e convidaram amigos e conhecidos para participarem da ação, que reuniu cerca de 100 pessoas no entardecer do dia 20. O Morro da Luz foi, deste modo, posto em relação com seu contexto histórico, sociopolítico e cultural, sendo visto como um símbolo dos descasos cotidianos que afetam a cidade e seus moradores. Chamava a atenção a contradição entre o nome do espaço, que traz o termo “luz” e a escuridão figurativa a que o parque foi submetido. O lugar que levava a luz a Cuiabá tornou-se escuro, invisibilizado, fechado para a sociedade - impossibilitada de entrar ali. Nas discussões entre o grupo, surgiu diversas vezes a observação de que o morro tinha se tornado um “não-lugar” para a população, havendo uma certa naturalização do cerceamento estabelecido indiretamente pelo poder público. Um espaço central da cidade tinha sido tomado e um silêncio pairava sobre esse cenário.
Assim foi feito. Os acadêmicos se mobilizaram e convidaram amigos e conhecidos para participarem da ação, que reuniu cerca de 100 pessoas no entardecer do dia 20. O Morro da Luz foi, deste modo, posto em relação com seu contexto histórico, sociopolítico e cultural, sendo visto como um símbolo dos descasos cotidianos que afetam a cidade e seus moradores. Chamava a atenção a contradição entre o nome do espaço, que traz o termo “luz” e a escuridão figurativa a que o parque foi submetido. O lugar que levava a luz a Cuiabá tornou-se escuro, invisibilizado, fechado para a sociedade - impossibilitada de entrar ali. Nas discussões entre o grupo, surgiu diversas vezes a observação de que o morro tinha se tornado um “não-lugar” para a população, havendo uma certa naturalização do cerceamento estabelecido indiretamente pelo poder público. Um espaço central da cidade tinha sido tomado e um silêncio pairava sobre esse cenário.
Em uma etnografia
produzida na área metropolitana de São Paulo sobre a segregação espacial nas
grandes cidades, Caldeira se debruça sobre o problema da proliferação dos
condomínios fechados (chamados no trabalho de “enclaves fortificados”)
habitados por pessoas de classes sociais abastadas. Em contraponto, os espaços
públicos das ruas e praças são relegados às classes baixas, aos marginalizados.
Nas
últimas décadas, a proliferação de enclaves fortificados vem criando um novo
modelo de segregação espacial e transformando a qualidade da vida pública em
muitas cidades ao redor do mundo. Enclaves fortificados são espaços
privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou
trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais
justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a
tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os "marginais" e
os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas (...) Consequentemente,
nessas cidades o caráter do espaço público e da participação dos cidadãos na
vida pública vem sendo drasticamente modificado. (CALDEIRA, 1996, p. 155)
Pode-se traçar um
paralelo entre os objetos observados. Também em certos espaços públicos da
cidade de Cuiabá, percebe-se um esvaziamento de trânsito populacional, um
abandono da cidade. A violência, a criminalidade têm sido apontadas como as
principais razões para tanto, uma vez que o poder estatal não se posiciona para
manter boas condições de permanência nesses lugares, que deixaram se ser
centros de convivência para se tornarem espécies de “sombras” esquecidas em
meio ao movimento urbano.
Retomando mais uma vez
as reuniões de preparação em sala de aula, é preciso pontuar que algumas
pessoas evocaram tempos em que o morro foi um espaço de grande sociabilidade na
cidade. Toda a ideia da intervenção teve como motor a tentativa de reativar a
visibilidade do parque. A intenção era que o morro voltasse a ser
simbolicamente um “lugar”.A intervenção estava “praticando” um lugar da cidade.
Vem daí o instrumento principal a impulsionar a ação poética: as lanternas. A
proposta era trazer de volta a luz, iluminar o lugar para a população e
especialmente para o poder público e talvez, assim, incitar futuras mudanças.
Entre
política e poesia: o sentido das “intervenções urbanas”
A expressão
“intervenção urbana” vem da segunda metade do século XX para caracterizar os
movimentos artísticos relacionados à ação visual nas grandes metrópoles. A arte
urbana é uma forma de prática social que se apropria do espaço urbano com
propósitos estéticos. Essas atuações são fortemente marcadas pela ideia de
recuperação da ação artística enquanto gesto subversivo e político.
Antes de pontuarmos as
principais características das intervenções, é preciso nortear brevemente o
sentido do modo de existência urbano. Compreender o que é vida na cidade e o
tempo no qual ela emerge contribui para assentar os significados do ato
artístico que estamos investigando.
A cidade é mais do que
um espaço construído em oposição ao campo. Sua formação reflete os
condicionamentos de seu contexto temporal, de novos significados sociais. A
complexidade pode ser assinalada como um dos seus principais signos.
Daí serem tão
complexas (as cidades), quão complexas são as perspectivas da vida urbana.
(...) A mercadoria, o comércio, a industrialização, o êxodo rural, a explosão
demográfica, a fábrica, a linha de montagem, a especialização da mão-de-obra, o
salário, o patrão, o operário, a manufatura, a tecnologia, a eletricidade, a
eletrônica-nessas imagens estão as representações, a linguagem urbana através
da qual não se apreende explicações abstratas, mas aquelas constantes que
atingem e modelam o nosso quotidiano. As imagens urbanas despertam a nossa
percepção na medida em que marcam o cenário cultural da nossa rotina e a
identificam como urbana (...) uma
atmosfera que assinala um modo de vida e certo tipo de relações sociais.
(CALDEIRA, 2009, p.31)
A cidade em sua
complexidade é o cenário das ações poéticas em tela. A urbe se coloca como uma
mídia alternativa (Prosser, 2010, p.27), o próprio veículo de comunicação entre
os proponentes da intervenção e os transeuntes. As ações interventoras realizadas
na cidade reclamam um contato direto com o passante, não mediado por circuitos
oficiais de exposição artística. O conceito mesmo de arte é revisto e
problematizado quando esta é performada livremente em meio à organicidade das
tramas urbanas diárias.
Intervir artisticamente
na cidade é furar a normalidade visual e sonora de seu cotidiano. A cidade é
explorada enquanto suporte artístico e novas imagens, sons, movimentos são
colocados fugaz e inesperadamente à vista dos passantes. O elemento surpresa
marca essas obras que exprimem um sentimento de confrontação e questionamento
da ordem corrente do cotidiano. Os olhares atraídos pelas intervenções são inquiridos
e apresentados a um sentimento de estranheza e inadequação. Os passantes são
obrigados a abandonar uma postura de inconsciência e desatenção e pensar no
sentido do que lhe é apresentado, desafiando a velocidade dos passos.
Pode-se afirmar que o
elemento de confronto e surpresa esteve presente na intervenção urbana “Morro
de Luz”. Não é comum que o espaço em questão seja ocupado por um grupo grande
de pessoas, especialmente de estudantes. Com certeza, portar as lanternas
também reforçou o sentido incomum da ação. Uma certa expectativa social foi
rompida para que a intervenção artística pudesse ser realizada. Foi imputada
importância a um espaço considerado desimportante e relegado. Um lugar obscurecido
foi iluminado denotativa e representativamente.
Os atos interventores
urbanos transitam entre comunicar um discurso politizado e engajado e despertar
nas pessoas um sentimento poético e lúdico: são discursos que se entrecruzam. Poiésis e política dialogam num complexo
texto que se vale do peso revolucionário do signo artístico para levantar
problemas de ordem coletiva. Os significados da recepção dessa junção são
múltiplos. Não há um acolhimento automático, mecânico, das ações de intervenção
pelo público. As performances se completam quando os seus sentidos são
constituídos pelos passantes, numa relação dinâmica e sujeita a reapropriações.
Na ação que estamos
discutindo, a vocação política era clara. O poder público estava sendo chamado
para a interlocução, quando a sua omissão era sublinhada. Os estudantes que se
mobilizaram, naturais ou não de Cuiabá, colocaram-se como partes da cidade,
ressaltando o sentido de cidadania ao enfatizarem a corresponsabilidade de
todos para que aquela situação fosse alterada.
As intervenções urbanas
também podem ser vistas como formas oriundas de um tempo bastante recente de
mobilização política. É uma outra via de ação cidadã, que acessa o poder formal
por caminhos não usuais, produzindo uma fala pública reverberada pela arte.
Faz-se urgente
pensar e repensar as maneiras de ação política para além daquelas consagradas e
estabelecidas. Isso realmente é fundamental. É necessário oxigenar e buscar
novas formas públicas de dizer ‘sim’ e ‘não’ sobre os diversos assuntos que
tomam assento na vida cotidiana. Para a
ação política é preciso criatividade com contundência (assim como na arte). (SALMITO,
2012, p. 5)
A iniciativa gerou
repercussão através de veículos de comunicação locais, alguns dos quais fizeram
a cobertura do evento. A mídia é considerada em nossos tempos como uma
importante formadora do espaço público, além de exercer um papel de vigilância
social e mediação entre a população e o poder público. Sendo assim, é possível sustentar
que a intenção política da ação foi reafirmada pelo envolvimento midiático com
a iniciativa.
No que tange à
expressão artística da intervenção, além de seu conceito e concepção se alinhar
nessa direção, também seu conteúdo trouxe a relevância da arte como um fator de
renovação do espaço escolhido. A estética dos raios das lanternas e dos canhões
de luz, a música do flautista que abriu a ação, a escultura do artista plástico
presente além da participação livre dos estudantes envolvidos, que leram poemas,
criaram um conceito que refletiu a ideia da pertinência do fazer artístico no
futuro do espaço restaurado e visitado por diferentes linguagens estéticas.
Arte, mobilização
política, sentidos de confronto e estranhamento conversaram na proposta
realizada. “Morro da Luz” foi uma ação poética urbana que se deu dentro da
cidade e de seu mover sempre contínuo, próprio dos organismos vivos e sujeitos
a constantes processos de ressignificação de seus habitantes.
Bibliografia
BARJA, Wagner. Intervenção/Terinvenção-A arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano. Revista Ibero-americana de Ciência da Informação, v. 1 n, 1 Rio de Janeiro, 2008.Disponível em http://seer.bce.unb.br/index.php/RICI/article/viewFile/816/2359. Acesso em 10 de jun. 2014.
CALDEIRA, Solange
Pimentel. O lamento da Imperatriz: a
linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo:
Annablume, 2009.
CALDEIRA, Teresa Pires
do Rio. Fortified Enclaves: The New Urban Segregation. Public Culture, 1996.
PROSSER, Elizabeth. Grafitti Curitiba. Curitiba: Kairós,
2010.
XXXV Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação-INTERCOM, 35, 2012, Ceará.SALMITO,
Ricardo.Intervenção Urbana entre Arte e Política:os
Textos de Vicente Marcolino na Cidade de
Exu -PE. Disponível em www.intercom.org.br/sis/2012/resumos/R7-1342-1.pdf Acesso em 10 jun. 2014.
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