quinta-feira, 19 de junho de 2014

“Morro de Luz”: A cidade reivindicada como espaço de arte



Andreza Silva Pereira

O presente artigo tem como objetivo propor reflexões teóricas acerca da intervenção poética realizada no dia 20 de maio de 2014 pela turma ingressante no referido ano no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) da Universidade Federal de Mato Grosso- UFMT. A proposta foi uma das atividades previstas na disciplina de “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I”,  integrando também as ações do Coletivo artístico “À Deriva”.
A intervenção foi feita no espaço chamado “Morro da Luz” , sendo nomeada de “Morro de Luz”. O morro, cujo nome oficial é “Parque Antônio Pires de Campos”, está situado no centro da capital cuiabana, tendo sido inaugurado em 1925 e tombado como patrimônio histórico municipal em 1983. O primeiro parque urbano do Centro-Oeste brasileiro ficou conhecido como Morro da Luz por abrigar uma subestação que fazia distribuição de energia elétrica a partir do final da década de 1920 para a cidade. O parque reúne uma extensa área verde e trilhas de caminhada. Devido à localização e grande arborização, sua temperatura média é de 3 a 4º C menor que a do centro de Cuiabá.
Com o passar das décadas, o lugar passou a ser desassistido pelo poder público. Não há registros que possam precisar quando, mas o espaço foi tornando-se um ponto em que ocorrem práticas de venda e uso de drogas. A população em geral deixou de frequentar o morro, que se fez conhecido pelo risco que apresentava aos transeuntes. O lugar não mais recebeu a manutenção devida do poder público seja por meio dos serviços de iluminação, limpeza ou policiamento.

O Morro da Luz como espaço de intervenção

De forma coletiva e colaborativa, o grupo de estudantes juntamente com a professora Maria Thereza Azevedo reconheceram no quadro dado um caminho para uma potencial intervenção poética urbana. A situação permitia e ensejava uma prática interventora dessa natureza, pois como nos expõe Barja, "Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural "(BARJA, 2008, p. 214).
Assim foi feito. Os acadêmicos se mobilizaram e convidaram amigos e conhecidos para participarem da ação, que reuniu cerca de 100 pessoas no entardecer do dia 20. O Morro da Luz foi, deste modo, posto em relação com seu contexto histórico, sociopolítico e cultural, sendo visto como um símbolo dos descasos cotidianos que afetam a cidade e seus moradores. Chamava a atenção a contradição entre o nome do espaço, que traz o termo “luz” e a escuridão figurativa a que o parque foi submetido. O lugar que levava a luz a Cuiabá tornou-se escuro, invisibilizado, fechado para a sociedade - impossibilitada de entrar ali. Nas discussões entre o grupo, surgiu diversas vezes a observação de que o morro tinha se tornado um “não-lugar” para a população, havendo uma certa naturalização do cerceamento estabelecido indiretamente pelo poder público. Um espaço central da cidade tinha sido tomado e um silêncio pairava sobre esse cenário.
Em uma etnografia produzida na área metropolitana de São Paulo sobre a segregação espacial nas grandes cidades, Caldeira se debruça sobre o problema da proliferação dos condomínios fechados (chamados no trabalho de “enclaves fortificados”) habitados por pessoas de classes sociais abastadas. Em contraponto, os espaços públicos das ruas e praças são relegados às classes baixas, aos marginalizados.



Nas últimas décadas, a proliferação de enclaves fortificados vem criando um novo modelo de segregação espacial e transformando a qualidade da vida pública em muitas cidades ao redor do mundo. Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os "marginais" e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas (...) Consequentemente, nessas cidades o caráter do espaço público e da participação dos cidadãos na vida pública vem sendo drasticamente modificado. (CALDEIRA, 1996, p. 155)


Pode-se traçar um paralelo entre os objetos observados. Também em certos espaços públicos da cidade de Cuiabá, percebe-se um esvaziamento de trânsito populacional, um abandono da cidade. A violência, a criminalidade têm sido apontadas como as principais razões para tanto, uma vez que o poder estatal não se posiciona para manter boas condições de permanência nesses lugares, que deixaram se ser centros de convivência para se tornarem espécies de “sombras” esquecidas em meio ao movimento urbano.
Retomando mais uma vez as reuniões de preparação em sala de aula, é preciso pontuar que algumas pessoas evocaram tempos em que o morro foi um espaço de grande sociabilidade na cidade. Toda a ideia da intervenção teve como motor a tentativa de reativar a visibilidade do parque. A intenção era que o morro voltasse a ser simbolicamente um “lugar”.A intervenção estava “praticando” um lugar da cidade. Vem daí o instrumento principal a impulsionar a ação poética: as lanternas. A proposta era trazer de volta a luz, iluminar o lugar para a população e especialmente para o poder público e talvez, assim, incitar futuras mudanças.

Entre política e poesia: o sentido das “intervenções urbanas”

A expressão “intervenção urbana” vem da segunda metade do século XX para caracterizar os movimentos artísticos relacionados à ação visual nas grandes metrópoles. A arte urbana é uma forma de prática social que se apropria do espaço urbano com propósitos estéticos. Essas atuações são fortemente marcadas pela ideia de recuperação da ação artística enquanto gesto subversivo e político.
Antes de pontuarmos as principais características das intervenções, é preciso nortear brevemente o sentido do modo de existência urbano. Compreender o que é vida na cidade e o tempo no qual ela emerge contribui para assentar os significados do ato artístico que estamos investigando.
A cidade é mais do que um espaço construído em oposição ao campo. Sua formação reflete os condicionamentos de seu contexto temporal, de novos significados sociais. A complexidade pode ser assinalada como um dos seus principais signos.



Daí serem tão complexas (as cidades), quão complexas são as perspectivas da vida urbana. (...) A mercadoria, o comércio, a industrialização, o êxodo rural, a explosão demográfica, a fábrica, a linha de montagem, a especialização da mão-de-obra, o salário, o patrão, o operário, a manufatura, a tecnologia, a eletricidade, a eletrônica-nessas imagens estão as representações, a linguagem urbana através da qual não se apreende explicações abstratas, mas aquelas constantes que atingem e modelam o nosso quotidiano. As imagens urbanas despertam a nossa percepção na medida em que marcam o cenário cultural da nossa rotina e a identificam como urbana (...)  uma atmosfera que assinala um modo de vida e certo tipo de relações sociais. (CALDEIRA, 2009, p.31)



A cidade em sua complexidade é o cenário das ações poéticas em tela. A urbe se coloca como uma mídia alternativa (Prosser, 2010, p.27), o próprio veículo de comunicação entre os proponentes da intervenção e os transeuntes. As ações interventoras realizadas na cidade reclamam um contato direto com o passante, não mediado por circuitos oficiais de exposição artística. O conceito mesmo de arte é revisto e problematizado quando esta é performada livremente em meio à organicidade das tramas urbanas diárias.
Intervir artisticamente na cidade é furar a normalidade visual e sonora de seu cotidiano. A cidade é explorada enquanto suporte artístico e novas imagens, sons, movimentos são colocados fugaz e inesperadamente à vista dos passantes. O elemento surpresa marca essas obras que exprimem um sentimento de confrontação e questionamento da ordem corrente do cotidiano. Os olhares atraídos pelas intervenções são inquiridos e apresentados a um sentimento de estranheza e inadequação. Os passantes são obrigados a abandonar uma postura de inconsciência e desatenção e pensar no sentido do que lhe é apresentado, desafiando a velocidade dos passos.
Pode-se afirmar que o elemento de confronto e surpresa esteve presente na intervenção urbana “Morro de Luz”. Não é comum que o espaço em questão seja ocupado por um grupo grande de pessoas, especialmente de estudantes. Com certeza, portar as lanternas também reforçou o sentido incomum da ação. Uma certa expectativa social foi rompida para que a intervenção artística pudesse ser realizada. Foi imputada importância a um espaço considerado desimportante e relegado. Um lugar obscurecido foi iluminado denotativa e representativamente.
Os atos interventores urbanos transitam entre comunicar um discurso politizado e engajado e despertar nas pessoas um sentimento poético e lúdico: são discursos que se entrecruzam. Poiésis e política dialogam num complexo texto que se vale do peso revolucionário do signo artístico para levantar problemas de ordem coletiva. Os significados da recepção dessa junção são múltiplos. Não há um acolhimento automático, mecânico, das ações de intervenção pelo público. As performances se completam quando os seus sentidos são constituídos pelos passantes, numa relação dinâmica e sujeita a reapropriações.
Na ação que estamos discutindo, a vocação política era clara. O poder público estava sendo chamado para a interlocução, quando a sua omissão era sublinhada. Os estudantes que se mobilizaram, naturais ou não de Cuiabá, colocaram-se como partes da cidade, ressaltando o sentido de cidadania ao enfatizarem a corresponsabilidade de todos para que aquela situação fosse alterada.
As intervenções urbanas também podem ser vistas como formas oriundas de um tempo bastante recente de mobilização política. É uma outra via de ação cidadã, que acessa o poder formal por caminhos não usuais, produzindo uma fala pública reverberada pela arte.



Faz-se urgente pensar e repensar as maneiras de ação política para além daquelas consagradas e estabelecidas. Isso realmente é fundamental. É necessário oxigenar e buscar novas formas públicas de dizer ‘sim’ e ‘não’ sobre os diversos assuntos que tomam assento  na vida cotidiana. Para a ação política é preciso criatividade com contundência (assim como na arte). (SALMITO, 2012, p. 5)



A iniciativa gerou repercussão através de veículos de comunicação locais, alguns dos quais fizeram a cobertura do evento. A mídia é considerada em nossos tempos como uma importante formadora do espaço público, além de exercer um papel de vigilância social e mediação entre a população e o poder público. Sendo assim, é possível sustentar que a intenção política da ação foi reafirmada pelo envolvimento midiático com a iniciativa.
No que tange à expressão artística da intervenção, além de seu conceito e concepção se alinhar nessa direção, também seu conteúdo trouxe a relevância da arte como um fator de renovação do espaço escolhido. A estética dos raios das lanternas e dos canhões de luz, a música do flautista que abriu a ação, a escultura do artista plástico presente além da participação livre dos estudantes envolvidos, que leram poemas, criaram um conceito que refletiu a ideia da pertinência do fazer artístico no futuro do espaço restaurado e visitado por diferentes linguagens estéticas.
Arte, mobilização política, sentidos de confronto e estranhamento conversaram na proposta realizada. “Morro da Luz” foi uma ação poética urbana que se deu dentro da cidade e de seu mover sempre contínuo, próprio dos organismos vivos e sujeitos a constantes processos de ressignificação de seus habitantes.



Bibliografia

BARJA, Wagner. Intervenção/Terinvenção-A arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano. Revista Ibero-americana de Ciência da Informação, v. 1 n, 1 Rio de Janeiro, 2008.Disponível em http://seer.bce.unb.br/index.php/RICI/article/viewFile/816/2359Acesso em 10 de jun. 2014.

CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço  urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Fortified Enclaves: The New Urban Segregation. Public Culture,  1996.

PROSSER, Elizabeth. Grafitti Curitiba. Curitiba: Kairós, 2010.

XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação-INTERCOM, 35, 2012, Ceará.SALMITO, 
Ricardo.Intervenção Urbana entre Arte e Política:os Textos de Vicente Marcolino na Cidade de 
Exu -PE. Disponível em www.intercom.org.br/sis/2012/resumos/R7-1342-1.pdf Acesso em 10 jun. 2014. 

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