sexta-feira, 20 de junho de 2014

Luz, carnaval, intervenção.

Camiseta em stencil para o “Morro de Luz”
Arte: Raquel Mützenberg
MORRO DE LUZ
Morre a noite
No Morro da Luz
Num parto cinza
Num grito de cor
Em doce suor
Parto-me em ideias
Pedaços pro alto

Parto pro morro
Sozinho, escuro
Dou a luz
O sol do dia
Nasce e brilha
Morro de amor
Morro de Luz
Alle Rodrigues

            Decorrentes das aulas da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I: Conceitos, Diálogos e Horizontes, ministrada pela profa. Dra. Maria Thereza Azevedo, para nós, estimada Marithê, do mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – ECCO/UFMT; as reflexões que se seguem têm como ponto de partida nossa vivência no momento da performance urbana coletiva que realizamos, integrados ao Coletivo à Deriva,  no Morro da Luz, no dia 20 de maio de 2014, denominada: “Morro de Luz”.
O Coletivo à Deriva, ligado ao Grupo de Pesquisas "Artes Híbridas, intersecções, contaminações, transversalidades" da citada universidade, é coordenado pela professora, pesquisadora, doutora e artista, Marithê, e atua, desde 2009, na nossa cidade, Cuiabá – MT. Ao longo desses anos já realizou/realizamos intervenções em diversos pontos, como no bairro/mercado do Porto, campus da UFMT, Largo da Mandioca, Praça Ipiranga, Praça da República e agora, no Morro da Luz.
Com o olhar voltado para a cidade, o Coletivo à Deriva se preocupa com o bem-estar da vida urbana, pensando alguns problemas e descasos. Cuiabá, de alcunha, aparentemente irônica, “Cidade Verde” vive sob um sol escaldante e sofre com a falta de arborização. Neste contexto acabou-se firmando como o logotipo do coletivo a sombrinha (guarda-chuva) em virtude da sua presença em diversas ações, representando, simbolicamente, a necessidade da sombra artificial em decorrência da carência da sombra natural das árvores.
     

Stencil da logo do coletivo criado para o “Morro de Luz”

O Morro da Luz, oficialmente, Parque Antônio Pires de Campos, nome dado em homenagem ao filho do bandeirante Manoel de Campos Bicudo, fica situado no centro de Cuiabá às margens da Av. Tenente Coronel Duarte, conhecida como “Prainha”. O historiador Moisés Martins, secretário adjunto de Cultura do município, conta em entrevista ao jornal Diário de Cuiabá (2012) que:
[...] a história do morro está diretamente ligada ao suprimento de energia elétrica a Cuiabá. Em 1919, por ocasião dos festejos do bicentenário da fundação da capital, inaugurou-se o primeiro serviço de iluminação pública (em substituição às lamparinas), cujos geradores eram movidos com máquinas a vapor [...]. “Para mandar a energia para as residências, construíram uma casinha [subestação da usina Casca I] com dois geradores” [...]. 
Mas foi só a partir da década de 40 que o lugar ficou conhecido como “Morro da Luz” devido à inauguração da Empresa de Força, Luz e Água (EFLA), até então chamado de “Lavras do Sutil”, em referência à época da mineração. Hoje em dia, no topo do morro funciona uma agência das Centrais Elétricas Matogrossenses – CEMAT, dando continuidade ao seu elo com a “luz”.
O Morro da Luz foi tombado pelo patrimônio histórico municipal em 1983.  Atualmente, compreende uma região de aproximadamente três hectares, repleta de árvores, cortada por trilhas, uma escadaria e algumas praças, que poderiam servir para o passeio e lazer dos cidadãos cuiabanos e visitantes, se não fosse seu abandono pelas autoridades públicas competentes e consequente ocupação por vendedores e usuários de drogas e moradores de rua. Um dos motivos de sua escolha para nossa intervenção foi o paradoxo gerado por este menosprezo: um lugar escuro, chamado Morro da Luz.
Maria Thereza Azevedo (2011) nos explica que “a proposta das intervenções é a transgressão da lógica dos espaços. Ao tirar o espaço da sua ação habitual é possível desencadear um processo de ressignificação do lugar.” 
 A partir daí, lançamos a proposta de iluminar o morro, visando chamar a atenção para a necessidade da sua revitalização/preservação. Tendo a internet como instrumento de mobilização, convidamos amigos, artistas, cidadãos, para subir o morro com lanternas acesas levando um pouco de arte e afeto para esse desprezado local. Nascia a performance coletiva, “Morro de Luz”.
      
 Foto: Frank Bussato

Sendo assim, o paradoxo foi a perspectiva inicial deste trabalho para pensarmos o “Morro de Luz”. Um paradoxo, grosso modo, pode ser entendido como uma contradição e vinculam-se à sua concepção, a dualidade, o contraste e a inversão – o que nos leva a lembrar das reflexões do filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre o carnaval; pois a intervenção - manifestação artística e/ou política própria da contemporaneidade - traz consigo larga herança carnavalesca.
Como apresentamos de início, o Morro de Luz tratou-se de uma “performance urbana coletiva”; a performance, a vida urbana e a coletividade, podem ser reconhecidas como “genes” do carnaval.
Em conformidade com o conceito de hibridismo de Canclini[1], a performance, como arte híbrida, flerta com o teatro; a encenação, o figurino, o público, lhe é inerente. E o carnaval lhe empresta a simulação, as fantasias e o espectador/participante. Para Bakhtin, “por seu caráter concreto e sensível e graças a um poderoso elemento de jogo, elas [as formas carnavalescas] estão mais relacionadas às formas artísticas e animadas por imagens, ou seja, às formas do espetáculo teatral.” (BAKHTIN, 1987:6)  
É na cidade, que o carnaval acontece desde suas origens antigas ou medievais; e é a vida urbana que afeta, incomoda, inspira e comove o Coletivo à Deriva. É a cidade também que possibilita o encontro das mais diversas pessoas; a população é um coletivo e dá origem à multidão. Sobre carnaval, tempo, cidade e multidão, Solange Caldeira[2] (2009) escreve: “o espaço e o tempo passageiros do carnaval, que deu origem a uma outra imagem urbana que brota na Idade Média e traz, até hoje, a sua grande personagem: a multidão.”
O carnaval extrapola o conceito de festa e tange o espetáculo. Espetáculo no qual o artista e o público são polos permutáveis e tomam como palco a praça ou a rua, em um determinado espaço de tempo, quebrando a rotina. O carnaval é momento de inversão, alívio e liberdade.
Na verdade, o carnaval ignora toda distinção entre atores e espectadores. Também ignora o palco [...]. Os espectadores não assistem ao carnaval, eles vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. (BAKHTIN, 1987:6)
            “A praça é a cena em que todos são atores e espectadores ao mesmo tempo; vive-se a ficção onde se exibem palhaços e mágicos mascarados num espetáculo de rua onde todos riem, um riso geral e universal.” (CALDEIRA, 2009, p. 35)
Foto: Walter Eller do Couto
No “Morro de Luz” fomos agentes e pacientes concomitantemente; tornamos-nos uma pequena multidão (cerca de cem pessoas) que ocupou de forma efêmera um espaço urbano acentuando seus paradoxos.
Como Bourriaud[3] (2009) ensina, a arte é um sistema cooperativo e, principalmente na nossa contemporaneidade, a obra de arte não é mais objeto colecionável, ela é experimentação, vivência; e Bakhtin (1987, p.6) diz, que o carnaval “se situa nas fronteiras entre a arte e a vida”, o Morro de Luz foi, de fato, uma experiência de vida. Um trabalho coletivo que rompeu o cotidiano, fazendo-se coexistentes dualidades articuláveis entre si, fomentando inversões, cumprindo-se a vida. As lanternas abraçaram a escuridão da noite e produziram as sombras. O frescor das árvores agasalhou o calor do concreto urbano dando lugar à sensação de bem-estar. O abandono cedeu-se à multidão. A poesia, o afeto, o zelo, confrontou-se valentemente com o medo instalado pelo perigo dos lugares marginais; e triunfou o desejo de podermos fazer, ainda que por um breve momento, do Parque do Morro da Luz, um “Morro de Luz”.

Referências bibliográficas e outras fontes de pesquisa
ARTS PROGRAMS at the Banff Centre. Nicolas Bourriaud. Disponível em: <http://www.banffcentre.ca/faculty/faculty-member/4253/nicolas-bourriaud/> Acesso em 20jun2014
ARAÚJO, Felipe. Mikhail Bakhtin. Disponível em:<http://www.infoescola.com/biografias/mikhail-bakhtin/> Acesso em 19jun2014
AZEVEDO, Maria Thereza. Porto à deriva: experiências de intervenção urbana na região do Porto em Cuiabá. Cuiabá, 08mar2011. Disponível em:<http://coletivoaderivacuiaba.blogspot.com.br/2011/03/porto-deriva-experiencias-de.html> Acesso em 19jun2014
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC;[Brasília]: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Baussch. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fapeming, 2009.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 3ª. ed. São Paulo: Edusp, 2000.
____Néstor García Canclini. Disponível em: <http://nestorgarciacanclini.net/> Acesso em 20jun2014
CARTAXO, Carlos. Performance como consolidação da arte híbrida na educação. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/artigo.php?id=72301> Acesso em 19jun2014
Coletivo à Deriva. Disponível em: <http://coletivoaderivacuiaba.blogspot.com.br/> Acesso em 17jun2014
DEUS, Joanice de. Morro da Luz: cereja do bolo na Copa. Diário de Cuiabá. Edição nº 13342 24/06/2012. Disponível em: <http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=413183> Acesso em 17jun2014
MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf> Acesso em17jun2014




[1] Néstor García Canclini (1939), antropólogo argentino contemporâneo.
[2] Solange Pimentel Caldeira é professora adjunta da Universidade Federal de Viçosa. Currículo lattes diponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4700794D7
[3] Nícolas Bourriaud (1965) é curador francês, escritor, crítico de arte e autor de ensaios teóricos sobre a arte contemporânea.

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