sábado, 28 de junho de 2014

Intervenção urbana: Uma experiência vivida


Terezinha do Nascimento Souza

A nossa intervenção no Morro da Luz, um patrimônio histórico de espaço urbano local, foi atividade de culminância da disciplina cursada em trinta horas “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I: Conceitos, Diálogos e Horizontes, realizada no dia vinte de maio do ano de dois mil e quatorze, e ministrada pela professora Drª Maria Thereza Azevedo.
A característica principal da disciplina é manter viva a tradição da performance interventiva do Coletivo à Deriva que se renova a cada ano, realizando performances interventivas de caráter artístico, político e pacífico, em locais públicos de áreas urbanas, chamando a atenção para os problemas sociais.
As aulas da turma 2014 foram realizadas a partir de revisão bibliográfica focada em temas reflexivos sobre “Autopoiese, fronteiras, hibridismos, fragmentação, colaboração, multiplicidade, repetição, e rupturas”. A partir de textos discutidos as aulas foram acontecendo, e aos poucos, de forma surpreendente, delineando a necessidade de um trabalho propositivo e interventivo, que materializasse, desse sentido e retorno ao que se estudava em sala de aula naquelas tardes produtivas, indo de encontro à proposta da professora Maria Thereza.
Então com a apropriação dos conteúdos dos textos lidos, de forma gradativa e crescente surgiu a vontade de por em prática o que estávamos estudando. E de forma compartilhada, o que iniciou como um cúmplice diálogo do grupo se transformou em proposta viva para a realização de uma histórica performance interventiva criativa.
Esse comportamento tem fundamento na opinião de Caldeira (2009, p. 32). Ela afirma que a realidade de pessoas convivendo de forma coletiva representa uma necessidade natural e ideal, como se o contrário disso fosse impossível, tendo nesse cenário os espaços agregadores da urbanidade: as cidades. E fazem parte delas as ferramentas existentes e viabilizadoras dessa convivência, num completo feedback de inúmeras necessidades e das mais diversas origens, modelos e finalidades, encaixados numa fenda que lhes dão sentido e os completam.
O grupo então, de comum acordo aos poucos delineou e sistematizou como seria a intervenção, ao mesmo tempo em que se discutia sobre o lugar ideal para sua execução. Vários foram apontados e imediatamente estudados os prós e contras de cada contexto pensado, até que surgiu a ideia do Morro da Luz, uma área significativa da cuiabania, tombada como patrimônio histórico. No passado o morro foi considerado parte do Sítio de mineração nos séculos XVIII e XIX.
Um morro sem luz, lugar que tem sua própria história atrelada aos significados das dez trilhas e quatro praças ali desenhadas e identificadas, e que nas suas simplicidades colaboram para relembrar figuras sociais imortais, veladas pela escuridão permanente do esquecimento, cujas identidades são resgatadas no momento em que outras pessoas buscam esses lugares. E Caldeira (2009, p. 53) divagando sobre o pensamento de Pina Baush afirma que “os lugares ganham identidade por intermédio das pessoas que estão lá”.
Imediatamente o grupo decidiu fazer uma verificação prévia do local, e aproveitando a euforia frente ao desconhecido partiu para a luta. Lá chegando aconteceu um milagre: a nossa paixão pelo morro na sua magnitude, e a sensação única de felicidade pela decisão tomada. A explicação para esse êxtase pode ser encontrada na citação de Caldeira (2009, p. 43):

“a imagem de uma cidade vista do alto de seu ponto culminante é a de uma imensidão imóvel, que aquele que olha vê e lê. Do alto, de longe, pode-se ver o conjunto, escapar do cotidiano e, à distância, ver a totalidade. (...). ela permite lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e gnóstica. Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber” (RAJCHMANN, 1991, 105).

A confirmação unânime pelo morro desdobrou-se em outras mais como o informe e convocação da mídia, da população, do horário de chegada à sua base às dezesseis horas, e início da subida às dezessete horas. E as roupas... Ah! algumas opções foram socializadas e votadas, e venceu o uso de roupas pretas e camisetas produzidas por alguns alunos, com exclusividade para o evento. Levamos nas mãos lanternas acesas, no pescoço colares brilhantes de luzes pisca-pisca e objetos de néon; nos pés a caminhada, no peito a incontida emoção. Canhões de luz a tiracolo, câmeras fotográficas, filmadoras, e aparelhos celulares de última geração. Alunos, amigos, artistas e colaboradores produzindo suas artes através da plasticidade em argila e dos instrumentos musicais violão e clarineta, vozes, corpos, artes visuais, cênicas, danças... e foi assim, da intervenção pensada até a sua realização e finalização.
O espírito de colaboração disseminada pelo pequeno coletivo fez fruir os processos criativos. O lugar foi votado e escolhido a ser vivido num fragmento do tempo ignorado, não percebido e não medido, mas explorado e extasiado.
Todos subindo o morro, não numa caminhada só pela caminhada, mas ela permeada por um contingente de significados, num tempo situado no contemporâneo. Libertando-se das amarras do cotidiano, no momento do cotidiano, transformando-o e incorporando o contraste causado pela simples atitude de adentrar nas trilhas históricas, compartilhando descobertas e sentimentos com o coletivo até a chegada na praça Zé Bolo Flô, escolhida para a realização dinâmica das expressões artísticas interventivas.
Nesse tipo de comportamento, a necessidade de caminhadas à deriva, nos reporta aos primeiros passos das intervenções em lugares públicos que demarcaram a arte contemporânea no Brasil nos anos de 1950 até 1960, quando suas principais figuras gravaram seus nomes da história nacional; cidadãos como Flávio de Carvalho com seus modelos de vestimentas em contraposição às matrizes europeias tradicionais; Lygia Clark e suas figuras geométricas saindo do tradicional espaço das molduras; e Hélio Oiticica com suas pinturas performances. Ambos registraram a plasticidade de suas criações no campo das artes visuais.
Eles colocaram em evidência a necessidade da participação do espectador, cujas performances não sem objetivos políticos foram intervenções em defesa do social, desse outro tão necessário para o eu, que num conceito do sujeito na subjetividade, entendendo Félix Guattari, Mansano (2009, p. 11) afirma que:

“... a subjetividade não implica uma posse, mas uma produção incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro. Nesse caso, o outro pode ser compreendido como o outro social, mas também como a natureza, os acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo que produz efeitos nos corpos e nas maneiras de viver. Tais efeitos, difundem-se por meio de múltiplos componentes de subjetividade que estão em circulação no campo social. Por isso mesmo, esse autor complementa sua análise dizendo que a “subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social”.

Desse convívio entre espaços e pessoas e seu cotidiano, em lugares disponíveis para acesso e uso, estão os ambientes com maiores ou menores significados à memória de determinadas sociedades/comunidades. Cidadãos do passado e do presente, e que independente das suas particulares características tem cravado em suas lutas o viés político, reafirmando que qualquer ação ou organização social é também política.
Fotografamos e filmamos tudo, recitamos poesias conhecidas, criamos outras e as dissemos aos quatro cantos delimitados do cenário da praça de solo acolhedor. E no espaço celestial sem fim, tudo perpassou as árvores cúmplices que naquele momento captavam e guardavam novos segredos, juntando-os aos antigos, na sua imensa solidão noturna.
Aquelas horas de intervenção no morro, resgatou-lhe e ao mesmo tempo doou-lhe timidamente vários pontos de luz que lançamos na noite que nos acolheu. Recebeu nossa retribuição enquanto focávamos o vazio diante de nós no acesso e utilização daquele espaço. Mas uma cruel verdade pairava ao redor daquele morro sem condições de permanência, por estar envolto numa apropriação indevida por parte de pequena população fixa e flutuante de pessoas visíveis e invisíveis: os usuários de drogas.
Os animais não foram notados; e lá não vimos não humanos. Não havia preocupação com tais seres, pois se alguns existissem não receberiam atenção, considerando-se a citação de Caldeira (2009, p. 53): “Claro que a natureza me interessa... mas o meu material de trabalho básico são as pessoas... (DUNDER, 2000, 46).
Tudo isso justifica a sistematização das horas trabalhadas em sala de aula, cujo estudo culminou com a intervenção do Coletivo à Deriva e sua organização. Penso que realizamos algo com objetivo não só de encenar, de criar ou interpretar, e nem por questões de ativismo. O que fizemos teve fundamentos específicos e abrangentes, para que não terminassem ali. Então eu me arrisco a dizer que nosso trabalho se encaixa, mesmo que de forma tímida, nas bases do projeto intervenção, um dos eixos da pesquisa-ação. Mas sem a pretensão de afirmar isso de forma mais literal.
E sobre a intervenção, a pesquisadora Baldissera (2001, p. 6) ao discutir o projeto intervenção, numa citação do principal teórico dessa linha, Michel Thiollent, afirma:

“Nesta perspectiva diz Thiollent, “é necessário definir com precisão, qual ação, quais agentes, seus objetivos e obstáculos, qual a exigência de conhecimento a ser produzido em função dos problemas encontrados na ação ou entre os atos da situação”. Thiollent (1985:16).

Sendo assim, eu tenho a certeza de que cumprimos a proposta interventiva com maestria, porque foi pensada, desejada e planejada.
Esta devolutiva contém os principais apontamentos desse trabalho tão bem elaborado, coordenado e executado.

Referenciais
CALDEIRA, Solange Pimental. O lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bauscj./Solange Pimentel Caldeira. – São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig, 2009.

COCCHIARALE, Fernando. A (outra) Arte Contemporânea Brasileira. Intervenções urbanas micropolíticas. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuas EBA. UFRJ, 2004.

MANSANO. Sonia Regina Vargas. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da UNESP, 8 (2). 2009.

IPNAH, Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano. Cuiabá-MT, 2010.


THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-ação (14ªed.) São Paulo: Editora Cortez, 2005.

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