Terezinha do Nascimento Souza
A nossa intervenção no
Morro da Luz, um patrimônio histórico de espaço urbano local, foi atividade de
culminância da disciplina cursada em trinta horas “Tópicos Especiais em Poéticas
Contemporâneas I: Conceitos, Diálogos e Horizontes, realizada no dia vinte de
maio do ano de dois mil e quatorze, e ministrada pela professora Drª Maria
Thereza Azevedo.
A característica
principal da disciplina é manter viva a tradição da performance interventiva do
Coletivo à Deriva que se renova a cada ano, realizando performances
interventivas de caráter artístico, político e pacífico, em locais públicos de
áreas urbanas, chamando a atenção para os problemas sociais.
As aulas da turma 2014 foram
realizadas a partir de revisão bibliográfica focada em temas reflexivos sobre “Autopoiese,
fronteiras, hibridismos, fragmentação, colaboração, multiplicidade, repetição,
e rupturas”. A partir de textos discutidos as aulas foram acontecendo, e aos
poucos, de forma surpreendente, delineando a necessidade de um trabalho propositivo
e interventivo, que materializasse, desse sentido e retorno ao que se estudava em
sala de aula naquelas tardes produtivas, indo de encontro à proposta da
professora Maria Thereza.
Então com a apropriação
dos conteúdos dos textos lidos, de forma gradativa e crescente surgiu a vontade
de por em prática o que estávamos estudando. E de forma compartilhada, o que
iniciou como um cúmplice diálogo do grupo se transformou em proposta viva para
a realização de uma histórica performance interventiva criativa.
Esse comportamento tem
fundamento na opinião de Caldeira (2009, p. 32). Ela afirma que a realidade de
pessoas convivendo de forma coletiva representa uma necessidade natural e
ideal, como se o contrário disso fosse impossível, tendo nesse cenário os
espaços agregadores da urbanidade: as cidades. E fazem parte delas as
ferramentas existentes e viabilizadoras dessa convivência, num completo feedback
de inúmeras necessidades e das mais diversas origens, modelos e finalidades,
encaixados numa fenda que lhes dão sentido e os completam.
O grupo então, de comum
acordo aos poucos delineou e sistematizou como seria a intervenção, ao mesmo
tempo em que se discutia sobre o lugar ideal para sua execução. Vários foram
apontados e imediatamente estudados os prós e contras de cada contexto pensado,
até que surgiu a ideia do Morro da Luz, uma área significativa da cuiabania,
tombada como patrimônio histórico. No passado o morro foi considerado parte do
Sítio de mineração nos séculos XVIII e XIX.
Um morro sem luz, lugar
que tem sua própria história atrelada aos significados das dez trilhas e quatro
praças ali desenhadas e identificadas, e que nas suas simplicidades colaboram
para relembrar figuras sociais imortais, veladas pela escuridão permanente do
esquecimento, cujas identidades são resgatadas no momento em que outras pessoas
buscam esses lugares. E Caldeira (2009, p. 53) divagando sobre o pensamento de
Pina Baush afirma que “os lugares ganham identidade por intermédio das pessoas
que estão lá”.
Imediatamente o grupo
decidiu fazer uma verificação prévia do local, e aproveitando a euforia frente
ao desconhecido partiu para a luta. Lá chegando aconteceu um milagre: a nossa paixão
pelo morro na sua magnitude, e a sensação única de felicidade pela decisão
tomada. A explicação para esse êxtase pode ser encontrada na citação de Caldeira
(2009, p. 43):
“a
imagem de uma cidade vista do alto de seu ponto culminante é a de uma imensidão
imóvel, que aquele que olha vê e lê. Do alto, de longe, pode-se ver o conjunto,
escapar do cotidiano e, à distância, ver a totalidade. (...). ela permite
lê-lo, ser um Olho solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e
gnóstica. Ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber” (RAJCHMANN,
1991, 105).
A confirmação unânime
pelo morro desdobrou-se em outras mais como o informe e convocação da mídia, da
população, do horário de chegada à sua base às dezesseis horas, e início da
subida às dezessete horas. E as roupas... Ah! algumas opções foram socializadas
e votadas, e venceu o uso de roupas pretas e camisetas produzidas por alguns
alunos, com exclusividade para o evento. Levamos nas mãos lanternas acesas, no
pescoço colares brilhantes de luzes pisca-pisca e objetos de néon; nos pés a
caminhada, no peito a incontida emoção. Canhões de luz a tiracolo, câmeras
fotográficas, filmadoras, e aparelhos celulares de última geração. Alunos,
amigos, artistas e colaboradores produzindo suas artes através da plasticidade
em argila e dos instrumentos musicais violão e clarineta, vozes, corpos, artes
visuais, cênicas, danças... e foi assim, da intervenção pensada até a sua realização
e finalização.
O espírito de
colaboração disseminada pelo pequeno coletivo fez fruir os processos criativos.
O lugar foi votado e escolhido a ser vivido num fragmento do tempo ignorado,
não percebido e não medido, mas explorado e extasiado.
Todos subindo o morro,
não numa caminhada só pela caminhada, mas ela permeada por um contingente de
significados, num tempo situado no contemporâneo. Libertando-se das amarras do
cotidiano, no momento do cotidiano, transformando-o e incorporando o contraste
causado pela simples atitude de adentrar nas trilhas históricas, compartilhando
descobertas e sentimentos com o coletivo até a chegada na praça Zé Bolo Flô, escolhida
para a realização dinâmica das expressões artísticas interventivas.
Nesse tipo de
comportamento, a necessidade de caminhadas à deriva, nos reporta aos primeiros
passos das intervenções em lugares públicos que demarcaram a arte contemporânea
no Brasil nos anos de 1950 até 1960, quando suas principais figuras gravaram
seus nomes da história nacional; cidadãos como Flávio de Carvalho com seus
modelos de vestimentas em contraposição às matrizes europeias tradicionais;
Lygia Clark e suas figuras geométricas saindo do tradicional espaço das
molduras; e Hélio Oiticica com suas pinturas performances. Ambos registraram a plasticidade
de suas criações no campo das artes visuais.
Eles colocaram em
evidência a necessidade da participação do espectador, cujas performances não
sem objetivos políticos foram intervenções em defesa do social, desse outro tão
necessário para o eu, que num conceito do sujeito na subjetividade, entendendo Félix
Guattari, Mansano (2009, p. 11) afirma que:
“...
a subjetividade não implica uma posse, mas uma produção incessante que acontece
a partir dos encontros que vivemos com o outro. Nesse caso, o outro pode ser
compreendido como o outro social, mas também como a natureza, os
acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo que produz efeitos nos corpos e nas
maneiras de viver. Tais efeitos, difundem-se por meio de múltiplos componentes
de subjetividade que estão em circulação no campo social. Por isso mesmo, esse
autor complementa sua análise dizendo que a “subjetividade é essencialmente
fabricada e modelada no registro do social”.
Desse convívio entre
espaços e pessoas e seu cotidiano, em lugares disponíveis para acesso e uso,
estão os ambientes com maiores ou menores significados à memória de
determinadas sociedades/comunidades. Cidadãos do passado e do presente, e que
independente das suas particulares características tem cravado em suas lutas o viés
político, reafirmando que qualquer ação ou organização social é também
política.
Fotografamos e filmamos
tudo, recitamos poesias conhecidas, criamos outras e as dissemos aos quatro cantos
delimitados do cenário da praça de solo acolhedor. E no espaço celestial sem
fim, tudo perpassou as árvores cúmplices que naquele momento captavam e
guardavam novos segredos, juntando-os aos antigos, na sua imensa solidão
noturna.
Aquelas horas de
intervenção no morro, resgatou-lhe e ao mesmo tempo doou-lhe timidamente vários
pontos de luz que lançamos na noite que nos acolheu. Recebeu nossa retribuição
enquanto focávamos o vazio diante de nós no acesso e utilização daquele espaço.
Mas uma cruel verdade pairava ao redor daquele morro sem condições de permanência,
por estar envolto numa apropriação indevida por parte de pequena população fixa
e flutuante de pessoas visíveis e invisíveis: os usuários de drogas.
Os animais não foram
notados; e lá não vimos não humanos. Não havia preocupação com tais seres, pois
se alguns existissem não receberiam atenção, considerando-se a citação de
Caldeira (2009, p. 53): “Claro que a natureza me interessa... mas o meu
material de trabalho básico são as pessoas... (DUNDER, 2000, 46).
Tudo isso justifica a
sistematização das horas trabalhadas em sala de aula, cujo estudo culminou com
a intervenção do Coletivo à Deriva e sua organização. Penso que realizamos algo
com objetivo não só de encenar, de criar ou interpretar, e nem por questões de
ativismo. O que fizemos teve fundamentos específicos e abrangentes, para que
não terminassem ali. Então eu me arrisco a dizer que nosso trabalho se encaixa,
mesmo que de forma tímida, nas bases do projeto intervenção, um dos eixos da
pesquisa-ação. Mas sem a pretensão de afirmar isso de forma mais literal.
E sobre a intervenção,
a pesquisadora Baldissera (2001, p. 6) ao discutir o projeto intervenção, numa
citação do principal teórico dessa linha, Michel Thiollent, afirma:
“Nesta
perspectiva diz Thiollent, “é necessário definir com precisão, qual ação, quais
agentes, seus objetivos e obstáculos, qual a exigência de conhecimento a ser
produzido em função dos problemas encontrados na ação ou entre os atos da
situação”. Thiollent (1985:16).
Sendo assim, eu tenho a
certeza de que cumprimos a proposta interventiva com maestria, porque foi
pensada, desejada e planejada.
Esta devolutiva contém
os principais apontamentos desse trabalho tão bem elaborado, coordenado e
executado.
Referenciais
CALDEIRA, Solange Pimental. O lamento da
Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bauscj./Solange
Pimentel Caldeira. – São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig, 2009.
COCCHIARALE, Fernando. A (outra) Arte
Contemporânea Brasileira. Intervenções urbanas micropolíticas. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuas EBA. UFRJ, 2004.
MANSANO. Sonia Regina Vargas. Sujeito,
subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de
Psicologia da UNESP, 8 (2). 2009.
IPNAH, Instituto de Planejamento e
Desenvolvimento Urbano. Cuiabá-MT, 2010.
THIOLLENT, M. Metodologia da Pesquisa-ação
(14ªed.) São Paulo: Editora Cortez, 2005.
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