Priscila Freitas
Iluminar,
como sinônimo de clarear, de preencher de luz um vazio no escuro. Aqui também
leva o significado de colorir, de alegrar, e dar vida a um lugar perdido no
espaço urbano de Cuiabá.
Na
tentativa de preencher de presença, luz, um lugar já ausente, escuro. Um lugar, carente de gente, de movimento, que
assiste passivamente a evolução da cidade e o passar dos anos. Engolido pela
correria do transito, pelas pessoas que não conseguem mais parar, ou que não
sabem mais parar e pouco menos olhar e enxergar. Um lugar no centro, e do
centro da cidade, sugado pelo caos, esquecido, e quase que perdido no tempo.
O
Morro da Luz, onde atualmente a luz só existe no nome. Um morro mesmo,
literalmente, carregado de beleza natural, de árvores e trilhas, árvores
centenárias, e trilhas misteriosas, sedentas de histórias para contar, criar e
reinventar. O morro que desperta a imaginação e a curiosidade dos poucos que
ainda sabem observar. Daqueles que deixam de olhar o relógio no celular, para
ver a paisagem.
Denominado
parque Antônio Pires de Campos, o Morro da Luz, foi tombado como Patrimônio
Histórico Municipal de Cuiabá pelo decreto de lei nº 870 de 13.12.1983. Que
homenageia o filho do bandeirante Manoel de Campos Bicudo, um dos primeiros a
desbravar Cuiabá, que naquela época ainda era o “Arraial de Cuiabá”. E
posteriormente, devido à existência de uma casinha pequena naquele morro,
rodeada por árvores de alto relevo, lugar onde se fazia a distribuição da
energia, é que foi inaugurado em 1928, o Morro da Luz.
Possuidor
de atributos ambientais que reforçam o sentido do lugar para as pessoas e
traçam vínculos de conhecimento e de efetividade com a relação à paisagem,
torna-se um importante fator que auxilia a medir a qualidade ambiental da
cidade de Cuiabá (COSTA et al, 1999).
Sua
temperatura é em média de 3 a 4º C menor do que no centro de Cuiabá. É
exatamente na região da Prainha que existem as ilhas de calor, bolsões de ar
quente que ficam espremidos entre as construções urbanas e retêm o calor em uma
microrregião. (COSTA, et al, 1999).
Cheio
de potencial para gerar bem estar e alegria, aos moradores de Cuiabá, o Morro
da Luz, hoje, se encontra engolido pela cidade, e lamentavelmente, habitado
pela fumaça dos cigarros dos andarilhos e trombadinhas que perambulam à noite.
Na
esperança de mudar esta realidade, é que o Coletivo
à Deriva, fundado pelo Grupo de Pesquisas e Artes Híbridas do ECCO (Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea) no Instituto de Linguagens
da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a liderança da professora Maria
Thereza Azevedo, teve a iniciativa realizar uma intervenção urbana, ocupando
por uma noite o Morro da Luz.
A proposta foi rechear de pessoas com lanternas,
canhões de luz e outros objetos luminosos e coloridos, o morro desabitado de
ilusões, ressuscitando ali a vida que ainda existe, com várias manifestações
artísticas, como música, danças, bolhas de sabão, muita luz e imaginação.
Por volta
das 17 horas, o grupo se reuniu ao pé do morro, animados e cheios de energia,
quando a noite chegou enfim, a caminhada teve início. Com adultos e crianças de
lanterna nas mãos, a sensação era de descoberta e empolgação, por estar num
antigo lugar, e vê-lo com novos olhos, o brilho no olhar era o principal
destaque nos rostos que apenas quem vive uma grande aventura consegue
transmitir.
Os
movimentos com as lanternas eram frenéticos, porém cuidadosos, afinal, ninguém
queria perder nenhum detalhe, e todos queriam ver o que a luz era capaz de
fazer no escuro. Os objetos luminosos piscavam no escuro, como vaga-lumes, uma
hora pertinho, noutra hora, longe, lá no alto sozinho. As luzes clareavam as
trilhas, e os pés dos amigos, que riam uns com os outros.
Além da
luz, as sombras também faziam festa, e brincavam entre elas, desenhavam no
escuro, os caminhos que se perdiam dentre as folhas secas, que naquele momento,
ganhava vida. Vida também ganhava o céu do Morro da Luz, iluminado por dois canhões
gigantes, que disparavam de baixo para cima uma forte luz, intensa o bastante
para chamar atenção dos que caminhavam distraidamente pelas ruas em volta do
morro. Lá em cima, o baile de cores, era composto por música e dança, por
pessoas fazendo bolhas de sabão, e descobrindo um mundo novo, pela luz que não
parava de criar, de se mostrar e fazer arte.
De modo
prático, conversando com a importância deste ato mágico, realizado no Morro da
Luz, no dia 20 de maio de 2014, é que vimos a necessidade de eternizar esta
intervenção urbana por meio da fotografia. Pois por meio do registro
fotográfico, é possível fazer e contar história, e em cima dessas histórias,
criar e desenhar novos sonhos.
A palavra
fotografia vem do grego antigo, onde “Fós”
significa “luz”, e “Grafis” significa
“Desenho” ou “Desenhar”, então a Fotografia é o ato de “Desenhar com a Luz”.
Que é o mesmo sentido que o Coletivo à Deriva, se propôs a fazer, desenhar com
a luz o Morro da Luz.
Na
pratica, a fotografia é uma técnica de gravação por meios químicos, mecânicos
ou digitais, de uma imagem numa camada de material sensível à exposição
luminosa, o que poder ser entendido, também, como o ato de “desenhar com a
luz”.
O ângulo usado pela câmera, à posição dela no quadro, o uso da
iluminação para realçar certos aspectos, qualquer efeito obtido pela cor,
tonalidade ou processamento teria o potencial do significado social. Quando
lidamos com imagens, torna-se especialmente evidente que não estamos lidando
apenas com o objeto ou o conceito que representam, mas também com o modo em que
estão sendo representados. A representação visual também possui uma
“linguagem”, conjunto de códigos e convenções usados pelos espectador para que
tenha sentindo aquilo que ele vê. As imagens chegam até nós já como mensagens
“Codificadas”, já representadas como algo significativo em vários modos. (TURNER, 1997, p.53)
Precisamos entender como funciona
esse sistema, esta gravação técnica, que atua como uma linguagem, a fotografia.
A produção
fotográfica “depende fundamentalmente da mediação de, no mínimo, três
dispositivos técnicos: a câmera, o sistema óptico da objetiva e a película
fotossensível” (MACHADO, 1997ª, pp.222). O órgão sensitivo da fotografia é uma
câmera/olho móvel que mimetiza a estrutura e as funções instrumentais do olho
biológico humano. Suas lentes são feitas de vidro, sua retina é uma superfície
fotossensível e seu nervo ótico, uma consciência perceptiva autoral. As imagens
são fixadas por meio de gradações tonais que vão do branco ao preto, da luz à
escuridão e de um tempo maior ou menor a exposição. (TOMAS, 1996, pp. 146 e
153).
O posicionamento da
câmera fotográfica é a mais evidente das práticas que contribuem para a
realização de uma foto, o manejo dos ângulos da câmera também influenciam para
a composição de seu significado.
Segundo Ivan Lima (1985, p. 22), a leitura de
uma foto também se compõe pela percepção, identificação e interpretação. A
percepção é puramente ótica, onde os olhos percebem as formas e as tonalidades.
A leitura de identificação que pode ser ótica ou mental, como a leitura de um
texto, em que o leitor identifica os componentes visuais e registra mentalmente
a sua informação. E a interpretação, é uma ação completamente mental, e é neste
estado que se manifesta o caráter polissêmico da fotografia. Onde cada leitor
interpreta da sua forma de acordo com as suas próprias referências e
experiências de vida. Onde a imaginação e os sonhos tomam forma.
É como se uma foto fosse uma imagem enquadrada
estaticamente, uma imagem parada no tempo e espaço, uma fração de vida
paralisada. Ela representa algo, um objeto, um ser, ou qualquer coisa passível
a visão.
A imagem revelada é
sua emanação do objeto, seu traço, fragmento, vestígio, sua marca e prova.
Entretanto por mais que seja inegável que a coisa fotografada esteve lá.
(BARTHES, 1980, p. 109), aquele pedaço de realidade, fixado para sempre em uma
projeção bidimensional, não é o objeto. É apenas uma emanação dele. Decorre de
todas essas condições a natureza ao mesmo tempo indicial (um fragmento residual
do objeto), icônica (similaridade com a imagem do objeto fotografado) e
simbólica (resultado de um certo sistema de decodificação) da fotografia, para
usarmos a terminologia da semiótica peirciana. (MOURA, 2001, p. 361)
Além disso, como
afirma Moura em “50 Anos de Luz, Câmera e Ação”, sem deixar de ser uma
emanação, a foto se constitui em objeto em si mesmo que tem sua própria
materialidade e ocupa seu lugar no mundo. Um lugar de muitos lugares, pois a
fotografia é, por sua própria natureza, reprodutível. Em virtude disso, enxames
de fotos dos mais variados lugares, interiores e exteriores, povoam o mundo e,
além de fazerem parte da realidade tanto quanto os objetos fotografados o
fazem, as fotos têm um poder multiplicador que os objetos não possuem.
(MOURA, 2001, p. 362).
Para Dondis, a fotografia é dominada pelo elemento
visual em que interage o tom, a cor, a forma, textura, escala e composição. A
autora também engrossa a fila dos estudiosos da imagem que “acreditam” que uma
foto não mente, baseados na hipótese de que “a fotografia tem uma
característica que não compartilha 100% com nenhuma outra arte visual – a
credibilidade.” (artigo As pernas e pés na fotografia da nudez feminina: uma
análise de semiótica plástica.)
(DONDIS,1997, p. 215-216).
Preexiste ainda sua
intervenção o fato de que a fotografia fixa é uma herdeira da câmera escura e
do olho centralizado da tradição perspectiva da pintura, isto é, de um certo
sistema de representação, de codificação do visível. Esse sistema de
codificação não impede certa similaridade entre imagem fotográfica de uma objeto
e as condições de visão humana desse objeto, pelo contrário, propicia-a.
(MOURA, 2001, p. 361).
A fotografia
depende essencialmente da luz, e a luz é formada por partículas que se deslocam
da fonte de energia luminosa até se chocarem com um objeto que possui cor. O
contraste na fotografia é preto e branco, por exemplo, é obtida pela própria
natureza das cores que vemos e sua nitidez e textura são realçadas pela
quantidade de luz que lhe é impressa. O branco representa clareza e vida, já o
preto, é uma cor que se fecha em si mesma e representa o sombrio, o mistério e
a morte.
Estes contrastes
entre luz e sombra, branco e preto, nas fotografias do Morro da Luz, conversam
diretamente com a realidade afirmada aqui, de desprezo e abandono. E reafirmam
a necessidade de iluminar, para transmitir segurança e povoar o lugar. Ou seja,
dar uma intenção a fotografia, saber manipular a luz. Para incentivar a
revitalização do Morro da Luz.
A fotografia é
sempre considerada uma arte de artistas mudos. As entrevistas de fotógrafos são
cheias de "não sei explicar direito" e do inevitável "sou
visual, não sei falar".
Uma fotografia bem
composta conduz o olhar para o seu centro de interesse. Explica sua intenção
pelo mostrar, pelo olhar, e não pelas palavras. Onde compor uma foto, é limpar
a imagem das coisas que não é interessante mostrar, é simplificar o número de
informações visuais que existem dentro de um quadro, é dirigir o olhar de quem
vê a foto para onde o fotógrafo quiser. (MOURA, 2001, p.433)
Fellini, elege a luz como matéria do
filme, ou no nosso caso, da fotografia. Ele é contundente na definição do poder
da luz:
“A luz seja a ideologia, sentimento, cor, tom profundidade,
atmosfera, narrativa. A luz é aquilo que reúne, que apaga, que reduz que
exalta, que arrisca, esfuma, sublinha, derruba, que faz tornar crível ou
aceitável o fantástico, o sonho, ou ao contrário, torna fantástico o real, dá
tom de miragem ao cotidiano mais simples, reúne transparências, sugere tensões
vibrações. A luz preenche um vazio, cria expressão onde ela não existe, doa
inteligência ao que é opaco, dá sedução à ignorância. A luz desenha a elegância
de uma figura, glorifica uma paisagem, a inventa do nada, dá magia a um fundo.
É o primeiro efeito especial, entendido como truque, como encantamento, como
engano, como loja de alquimia, máquina do maravilhoso. A luz é o sal
alucinatório que, queimando, irradia as visões: e o que vive, vive pela
luz.”(ALMEIDA, 2004)
A cenografia
mais elementar e rudemente realizada pode com a luz, adquirir perspectivas
insuspeitas, colocar a narrativa numa atmosfera inquietante. Ou então,
acendendo-se apenas um refletor, e dando-se uma contraluz, eis que todo sentido
de angústia se dissolve e tudo se torna sereno, familiar, seguro. A fotografia
é escrita com luz. (ALMEIDA, 2004, p. 68)
E com a luz,
acredita-se, podemos escrever uma nova história ao Morro da Luz.
O Morro iluminado, ganha seu nome, Luz, e recebe
a sua existência e todo seu valor de certas afinidades singulares entre a alma
e o olho. Desta forma, pode se dizer que a conexão entre a realidade do
abandono, e a esperança de revitalização, acontece por intermédio de uma forma
mediada e sensível, a fotografia.
Cyro dos Anjos (1982) considera a ficção, neste
caso, as fotografias do Morro iluminado, como uma interpretação da realidade,
quer exterior, vista pelos olhos da cidade como um todo, quer interior, vista
pela população de forma individual. Onde a imaginação é, assim, caracterizada
como instrumento de elaboração da realidade. Uma realidade considerada possível
para nós, que queremos o Morro da Luz, com luz.
DONDIS, Donis A.(1997) – Sintaxe da Linguagem
Visual. Ed. Martins
Fontes – São Paulo, 2000.
LIMA, Ivan. A Fotografia é a sua linguagem/ Ivan
Lima; apresentação Walter Firmo. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988.
MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>. Acesso em 25 jun. 2014.
MOURA, Edgar Peixoto de. 50 Anos Luz, Câmera e Ação/ Edgar
Moura. 2 ed – São Paulo: Editora Senac. São Paulo, 2001.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto
Inacabado: Processo de Criação Artística. 2 edição. São Paulo: FAPESP:
Annablume, 2004.
TURNER,
Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo: Editora Summus, 1997.
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