sábado, 28 de junho de 2014

Desenhando com o Morro da Luz: uma intervenção em Fós Grafis

Priscila Freitas

Iluminar, como sinônimo de clarear, de preencher de luz um vazio no escuro. Aqui também leva o significado de colorir, de alegrar, e dar vida a um lugar perdido no espaço urbano de Cuiabá.
Na tentativa de preencher de presença, luz, um lugar já ausente, escuro.  Um lugar, carente de gente, de movimento, que assiste passivamente a evolução da cidade e o passar dos anos. Engolido pela correria do transito, pelas pessoas que não conseguem mais parar, ou que não sabem mais parar e pouco menos olhar e enxergar. Um lugar no centro, e do centro da cidade, sugado pelo caos, esquecido, e quase que perdido no tempo.
O Morro da Luz, onde atualmente a luz só existe no nome. Um morro mesmo, literalmente, carregado de beleza natural, de árvores e trilhas, árvores centenárias, e trilhas misteriosas, sedentas de histórias para contar, criar e reinventar. O morro que desperta a imaginação e a curiosidade dos poucos que ainda sabem observar. Daqueles que deixam de olhar o relógio no celular, para ver a paisagem. 
Denominado parque Antônio Pires de Campos, o Morro da Luz, foi tombado como Patrimônio Histórico Municipal de Cuiabá pelo decreto de lei nº 870 de 13.12.1983. Que homenageia o filho do bandeirante Manoel de Campos Bicudo, um dos primeiros a desbravar Cuiabá, que naquela época ainda era o “Arraial de Cuiabá”. E posteriormente, devido à existência de uma casinha pequena naquele morro, rodeada por árvores de alto relevo, lugar onde se fazia a distribuição da energia, é que foi inaugurado em 1928, o Morro da Luz.
Possuidor de atributos ambientais que reforçam o sentido do lugar para as pessoas e traçam vínculos de conhecimento e de efetividade com a relação à paisagem, torna-se um importante fator que auxilia a medir a qualidade ambiental da cidade de Cuiabá (COSTA et al, 1999).
Sua temperatura é em média de 3 a 4º C menor do que no centro de Cuiabá. É exatamente na região da Prainha que existem as ilhas de calor, bolsões de ar quente que ficam espremidos entre as construções urbanas e retêm o calor em uma microrregião. (COSTA, et al, 1999).
Cheio de potencial para gerar bem estar e alegria, aos moradores de Cuiabá, o Morro da Luz, hoje, se encontra engolido pela cidade, e lamentavelmente, habitado pela fumaça dos cigarros dos andarilhos e trombadinhas que perambulam à noite.
Na esperança de mudar esta realidade, é que o Coletivo à Deriva, fundado pelo Grupo de Pesquisas e Artes Híbridas do ECCO (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea) no Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a liderança da professora Maria Thereza Azevedo, teve a iniciativa realizar uma intervenção urbana, ocupando por uma noite o Morro da Luz.
A proposta foi rechear de pessoas com lanternas, canhões de luz e outros objetos luminosos e coloridos, o morro desabitado de ilusões, ressuscitando ali a vida que ainda existe, com várias manifestações artísticas, como música, danças, bolhas de sabão, muita luz e imaginação.
Por volta das 17 horas, o grupo se reuniu ao pé do morro, animados e cheios de energia, quando a noite chegou enfim, a caminhada teve início. Com adultos e crianças de lanterna nas mãos, a sensação era de descoberta e empolgação, por estar num antigo lugar, e vê-lo com novos olhos, o brilho no olhar era o principal destaque nos rostos que apenas quem vive uma grande aventura consegue transmitir.
Os movimentos com as lanternas eram frenéticos, porém cuidadosos, afinal, ninguém queria perder nenhum detalhe, e todos queriam ver o que a luz era capaz de fazer no escuro. Os objetos luminosos piscavam no escuro, como vaga-lumes, uma hora pertinho, noutra hora, longe, lá no alto sozinho. As luzes clareavam as trilhas, e os pés dos amigos, que riam uns com os outros.
Além da luz, as sombras também faziam festa, e brincavam entre elas, desenhavam no escuro, os caminhos que se perdiam dentre as folhas secas, que naquele momento, ganhava vida. Vida também ganhava o céu do Morro da Luz, iluminado por dois canhões gigantes, que disparavam de baixo para cima uma forte luz, intensa o bastante para chamar atenção dos que caminhavam distraidamente pelas ruas em volta do morro. Lá em cima, o baile de cores, era composto por música e dança, por pessoas fazendo bolhas de sabão, e descobrindo um mundo novo, pela luz que não parava de criar, de se mostrar e fazer arte.
De modo prático, conversando com a importância deste ato mágico, realizado no Morro da Luz, no dia 20 de maio de 2014, é que vimos a necessidade de eternizar esta intervenção urbana por meio da fotografia. Pois por meio do registro fotográfico, é possível fazer e contar história, e em cima dessas histórias, criar e desenhar novos sonhos.
A palavra fotografia vem do grego antigo, onde “Fós” significa “luz”, e “Grafis” significa “Desenho” ou “Desenhar”, então a Fotografia é o ato de “Desenhar com a Luz”. Que é o mesmo sentido que o Coletivo à Deriva, se propôs a fazer, desenhar com a luz o Morro da Luz.
Na pratica, a fotografia é uma técnica de gravação por meios químicos, mecânicos ou digitais, de uma imagem numa camada de material sensível à exposição luminosa, o que poder ser entendido, também, como o ato de “desenhar com a luz”.  
O ângulo usado pela câmera, à posição dela no quadro, o uso da iluminação para realçar certos aspectos, qualquer efeito obtido pela cor, tonalidade ou processamento teria o potencial do significado social. Quando lidamos com imagens, torna-se especialmente evidente que não estamos lidando apenas com o objeto ou o conceito que representam, mas também com o modo em que estão sendo representados. A representação visual também possui uma “linguagem”, conjunto de códigos e convenções usados pelos espectador para que tenha sentindo aquilo que ele vê. As imagens chegam até nós já como mensagens “Codificadas”, já representadas como algo significativo em vários modos.  (TURNER, 1997, p.53)

Precisamos entender como funciona esse sistema, esta gravação técnica, que atua como uma linguagem, a fotografia.
A produção fotográfica “depende fundamentalmente da mediação de, no mínimo, três dispositivos técnicos: a câmera, o sistema óptico da objetiva e a película fotossensível” (MACHADO, 1997ª, pp.222). O órgão sensitivo da fotografia é uma câmera/olho móvel que mimetiza a estrutura e as funções instrumentais do olho biológico humano. Suas lentes são feitas de vidro, sua retina é uma superfície fotossensível e seu nervo ótico, uma consciência perceptiva autoral. As imagens são fixadas por meio de gradações tonais que vão do branco ao preto, da luz à escuridão e de um tempo maior ou menor a exposição. (TOMAS, 1996, pp. 146 e 153).
O posicionamento da câmera fotográfica é a mais evidente das práticas que contribuem para a realização de uma foto, o manejo dos ângulos da câmera também influenciam para a composição de seu significado.
 Segundo Ivan Lima (1985, p. 22), a leitura de uma foto também se compõe pela percepção, identificação e interpretação. A percepção é puramente ótica, onde os olhos percebem as formas e as tonalidades. A leitura de identificação que pode ser ótica ou mental, como a leitura de um texto, em que o leitor identifica os componentes visuais e registra mentalmente a sua informação. E a interpretação, é uma ação completamente mental, e é neste estado que se manifesta o caráter polissêmico da fotografia. Onde cada leitor interpreta da sua forma de acordo com as suas próprias referências e experiências de vida. Onde a imaginação e os sonhos tomam forma.
 É como se uma foto fosse uma imagem enquadrada estaticamente, uma imagem parada no tempo e espaço, uma fração de vida paralisada. Ela representa algo, um objeto, um ser, ou qualquer coisa passível a visão.  
A imagem revelada é sua emanação do objeto, seu traço, fragmento, vestígio, sua marca e prova. Entretanto por mais que seja inegável que a coisa fotografada esteve lá. (BARTHES, 1980, p. 109), aquele pedaço de realidade, fixado para sempre em uma projeção bidimensional, não é o objeto. É apenas uma emanação dele. Decorre de todas essas condições a natureza ao mesmo tempo indicial (um fragmento residual do objeto), icônica (similaridade com a imagem do objeto fotografado) e simbólica (resultado de um certo sistema de decodificação) da fotografia, para usarmos a terminologia da semiótica peirciana. (MOURA, 2001, p. 361)
Além disso, como afirma Moura em “50 Anos de Luz, Câmera e Ação”, sem deixar de ser uma emanação, a foto se constitui em objeto em si mesmo que tem sua própria materialidade e ocupa seu lugar no mundo. Um lugar de muitos lugares, pois a fotografia é, por sua própria natureza, reprodutível. Em virtude disso, enxames de fotos dos mais variados lugares, interiores e exteriores, povoam o mundo e, além de fazerem parte da realidade tanto quanto os objetos fotografados o fazem, as fotos têm um poder multiplicador que os objetos não possuem.  (MOURA, 2001, p. 362).
Para Dondis, a fotografia é dominada pelo elemento visual em que interage o tom, a cor, a forma, textura, escala e composição. A autora também engrossa a fila dos estudiosos da imagem que “acreditam” que uma foto não mente, baseados na hipótese de que “a fotografia tem uma característica que não compartilha 100% com nenhuma outra arte visual – a credibilidade.” (artigo As pernas e pés na fotografia da nudez feminina: uma análise de semiótica plástica.)  (DONDIS,1997, p. 215-216).
Preexiste ainda sua intervenção o fato de que a fotografia fixa é uma herdeira da câmera escura e do olho centralizado da tradição perspectiva da pintura, isto é, de um certo sistema de representação, de codificação do visível.  Esse sistema de codificação não impede certa similaridade entre imagem fotográfica de uma objeto e as condições de visão humana desse objeto, pelo contrário, propicia-a. (MOURA, 2001, p. 361).
A fotografia depende essencialmente da luz, e a luz é formada por partículas que se deslocam da fonte de energia luminosa até se chocarem com um objeto que possui cor. O contraste na fotografia é preto e branco, por exemplo, é obtida pela própria natureza das cores que vemos e sua nitidez e textura são realçadas pela quantidade de luz que lhe é impressa. O branco representa clareza e vida, já o preto, é uma cor que se fecha em si mesma e representa o sombrio, o mistério e a morte.
Estes contrastes entre luz e sombra, branco e preto, nas fotografias do Morro da Luz, conversam diretamente com a realidade afirmada aqui, de desprezo e abandono. E reafirmam a necessidade de iluminar, para transmitir segurança e povoar o lugar. Ou seja, dar uma intenção a fotografia, saber manipular a luz. Para incentivar a revitalização do Morro da Luz.
A fotografia é sempre considerada uma arte de artistas mudos. As entrevistas de fotógrafos são cheias de "não sei explicar direito" e do inevitável "sou visual, não sei falar".  
Uma fotografia bem composta conduz o olhar para o seu centro de interesse. Explica sua intenção pelo mostrar, pelo olhar, e não pelas palavras. Onde compor uma foto, é limpar a imagem das coisas que não é interessante mostrar, é simplificar o número de informações visuais que existem dentro de um quadro, é dirigir o olhar de quem vê a foto para onde o fotógrafo quiser. (MOURA, 2001, p.433)
Fellini, elege a luz como matéria do filme, ou no nosso caso, da fotografia. Ele é contundente na definição do poder da luz:
“A luz seja a ideologia, sentimento, cor, tom profundidade, atmosfera, narrativa. A luz é aquilo que reúne, que apaga, que reduz que exalta, que arrisca, esfuma, sublinha, derruba, que faz tornar crível ou aceitável o fantástico, o sonho, ou ao contrário, torna fantástico o real, dá tom de miragem ao cotidiano mais simples, reúne transparências, sugere tensões vibrações. A luz preenche um vazio, cria expressão onde ela não existe, doa inteligência ao que é opaco, dá sedução à ignorância. A luz desenha a elegância de uma figura, glorifica uma paisagem, a inventa do nada, dá magia a um fundo. É o primeiro efeito especial, entendido como truque, como encantamento, como engano, como loja de alquimia, máquina do maravilhoso. A luz é o sal alucinatório que, queimando, irradia as visões: e o que vive, vive pela luz.”(ALMEIDA, 2004)

A cenografia mais elementar e rudemente realizada pode com a luz, adquirir perspectivas insuspeitas, colocar a narrativa numa atmosfera inquietante. Ou então, acendendo-se apenas um refletor, e dando-se uma contraluz, eis que todo sentido de angústia se dissolve e tudo se torna sereno, familiar, seguro. A fotografia é escrita com luz. (ALMEIDA, 2004, p. 68)
E com a luz, acredita-se, podemos escrever uma nova história ao Morro da Luz.
O Morro iluminado, ganha seu nome, Luz, e recebe a sua existência e todo seu valor de certas afinidades singulares entre a alma e o olho. Desta forma, pode se dizer que a conexão entre a realidade do abandono, e a esperança de revitalização, acontece por intermédio de uma forma mediada e sensível, a fotografia.
Cyro dos Anjos (1982) considera a ficção, neste caso, as fotografias do Morro iluminado, como uma interpretação da realidade, quer exterior, vista pelos olhos da cidade como um todo, quer interior, vista pela população de forma individual. Onde a imaginação é, assim, caracterizada como instrumento de elaboração da realidade. Uma realidade considerada possível para nós, que queremos o Morro da Luz, com luz.


 Referências bibliográficas:

DONDIS, Donis A.(1997) – Sintaxe da Linguagem Visual. Ed. Martins Fontes – São Paulo, 2000.
LIMA, Ivan. A Fotografia é a sua linguagem/ Ivan Lima; apresentação Walter Firmo. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo. 1988.
MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>. Acesso em 25 jun. 2014.
MOURA, Edgar Peixoto de. 50 Anos Luz, Câmera e Ação/ Edgar Moura. 2 ed – São Paulo: Editora Senac. São Paulo, 2001.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística. 2 edição. São Paulo: FAPESP: Annablume, 2004.
TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo: Editora Summus, 1997.



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