sábado, 28 de junho de 2014

Caçando Actantes: experimentos em arte e política em um Morro de Luz


Walter Couto


É de Eric Hobsbawm (2002) a afirmação de que as tradições são inventadas por uma elite com o objetivo de trazer coesão social às culturas; Na mesma linha, Barbero (2003) fala em processos de enculturação. Talvez isso signifique que nossos símbolos, nossa coletividade e nossos ritos sejam todos limitados pela ação - aqui chamada de actância, porque incluímos também os não-humanos (Latour, 2012). Antes de terem uma “existência” própria, naturalizada, as instituições que compõem a tradição necessitam da actância de atores diversos, dispostos em uma rede. Sem essa organização, sob a fórmula do ator-rede, as tradições podem morrer. Morrer ou se transformar. Quando morrem não há ação alguma, ficam esquecidas e jamais fazem a diferença no curso de uma rede. Quando se transformam fazem apenas a “lição de casa” esperada das culturas: que sejam dinâmicas.

Então não há uma pedra-de-toque das tradições. E isso é bom porque impede que se transfira responsabilidade. Se algo está ruim, do ponto de vista da tradição, do que fazemos sobre algo, de como significamos alguma coisa, a culpa é sempre da geração atual: no mínimo é dela a culpa por se manter amorfa frente ao problema. Em sua etimologia latina traditio significa apenas “entregar”, passar para frente. Daí a ideia de invenção da tradição, porque temos o poder de escolher como passaremos a história para frente. Milênios de culturas orais construíram esse mecanismo, é só com a escrita que surge a preocupação em se fixar algo. Escolhemos o que vamos passar adiante e a realidade da cultura não existe por si só, é sempre criada, inventada e reinventada.

Mas é verdade que há também vezes em que as dinâmicas do poder envolvidas nesses processos de invenção da tradição são próximas daquelas teorizadas por Foucault: Microfísicas do poder, biopolítica, sociedade de controle. Nessas situações o poder é tão difuso que transforma o cidadão comum num agente do poder (um modo não coercitivo). A coesão surge porque a tradição, com todas as suas instituições, age e faz a diferença no social. Há também aqueles momentos em que a ação é mais direta, quando se quer mudar a tradição e inventa-la. Um perturbador meio termo também existe, quando a tradição entra em falência mas não morre; Ela existe, mas não age, e quando o faz é de modo completamente inesperado; Ninguém está preocupado em inventar outra tradição e a que existe não funciona mais.

Talvez em poucos lugares isso ocorreu de modo tão marcado como no Parque do Morro da Luz, em Cuiabá (capital mato-grossense). Tratasse de um parque urbano (referido na cidade apenas como o “Morro da Luz”), como tantos outros que existem em cidades pelo mundo. Ele é importante na história de Cuiabá, está no centro da cidade, no entanto se mantêm invisível. O problema do morro é simples: tinha corpo, um enorme corpo, mas não tinha alma. Outros morros menos cercados de homens tem muito mais vida, como o Uluru, no norte da Austrália, que pode se gabar de ter um enorme catálogo de mitologias e narrativas sob seu verbete. O Uluru conversa com a sociedade, faz parte dela. O Morro da Luz, não. O Morro da Luz era um inconveniente massa de terra no centro da cidade, não fosse pelo “inconveniente” suas tradições estariam todas mortas. Ele era um ser sem alma, mas não estava morto ainda.

Das poucas importâncias que tinha na cidade, destacasse duas. Primeiro o Morro da Luz era um ponto de ônibus, talvez o maior da cidade, onde passam várias linhas. Segundo ele é quase que uma terra intocável e exótica: ninguém nunca subiu lá. Não havia luz no Morro da Luz. Seus donos (e únicos a interagir com ele) eram os usuários de drogas e os moradores de rua. Mas não se enganem, não é deles a culpa do Morro da Luz não ter alma: eles estão lá só por causa disso, um lugar invisível para o ilícito, onde nem a polícia e nem os olhos curiosos da sociedade está presente. Não é por causa deles que o Morro é ruim, mas porque é ruim é que eles o habitam.

O Morro da Luz, por reflexo de sua falta de importância, permaneceu durante muitos anos no universo do mutismo. Jamais falamos sobre o Morro da Luz. Apenas falamos sobre os usuários de drogas e os ônibus que vão passar. Falamos sobre o perigo do morro, mas nunca sobre o que há no morro. É um perigo em potência, porque não há relatos sobre um perigo real vindo dele. É a ideia do perigo da escuridão e da bandidagem. O Morro da Luz se tornou, de forma naturalizada, um lugar distante (mesmo tão perto), um lugar perigoso, um lugar do passado, um lugar que já foi um lugar, mas que hoje não tem importância. Esta situação é prolongada.

Há, no entanto, quem se preocupe com ele, uma minoria. Quem se incomode com um parque fresco se tornar inútil para uma cidade em que há temperaturas de até 40 graus. Se é possível, como afirmamos, inventar as tradições, que se pense então em como pode ser feito. O Coletivo à Deriva buscou o caminho da arte. Conhecido na cidade por promover intervenções urbanas, o grupo (do qual faço parte) propôs uma ação em que se iluminasse o morro, até então totalmente desprovido de luz; Tornar ele habitado, até então totalmente desprovido de pessoas (exceto pelos usuários de drogas e mendigos); Tornar ele vibrante e vivo.
Um evento no Facebook foi criado, então, com o objetivo de convocar a população para algo sem precedentes na vida da esmagadora maioria dos cuiabanos: subir o Morro da Luz. Mas não só isso, todos deveriam levar uma lanterna para ilumina-lo. Além de promover um sarau artístico lá em cima. A arte se coloca então como uma ferramenta experimental de mundos possíveis. O mundo possível que se quer desenhar aqui é o de um Morro da Luz com vida, que dialogue com a cidade e que promova uma outra tradição do Morro. O Coletivo à Deriva quer reinventar a tradição para poder “passar adiante” algo melhor do que temos hoje.

Bruno Latour (2011) fez um exercício bastante importante para entendermos o que ocorreu no Morro da Luz, mas relacionado à ciência. O artigo Experimentos em Arte e Política, o autor trabalha com o pressuposto de que a realidade e a criação são sinonimas. Os pesquisadores criam conceitos. A ciência é um braço da cultura e não está alheia a ela. A forma como os cientistas analisam as inscrições, os dados, é limitada à um universo inteligível, ou um universo que torna as coisas inteligíveis, e esse universo é limitado e quase sempre dialogístico. É natural, portanto, a grande utilização de metáforas explicativas na interpretação dos “dados da realidade”. Como quando os biólogos descreviam o corpo como uma máquina, as células como laboratórios etc. O termo conceito-fetiche, de Umberto Ecco (1993), caminha também nesse viés, quando fala sobre a fragilidade do conceito de indústria cultural apontando sua falta de singularidade.

As artes, especialmente as artes contemporâneas, conseguem romper algumas fronteiras visuais, estéticas e culturais, podendo inclusive causar estranhamento.  De modo que seria interessante para as ciência (ou por qualquer área) dialogar com as artes e utilizar sua capacidade criativa, e ampliativa na interpretação dos fatos. O mesmo é feito pela ficção científica futurista. Ao imaginar um mundo futuro onde a ciência e tecnologia evoluiu de modo diferente, o escritor faz um ensaio sobre alguma coisa. Como se quisesse responder a questão: “o que ocorreria se… algo fosse diferente?” - O que ocorreria se o mundo fosse invadido por alienígenas? O que ocorreria se as máquinas dominassem o mundo? O que ocorreria se pudéssemos viajar no tempo?

A pergunta do Coletivo à Deriva foi “o que ocorreria se o Morro da Luz fosse iluminado, artístico, com vida?”. A intervenção em si constituiu-se, então, no experimento artístico que quis responder essa questão. Cerca de 50 pessoas compareceram ao ato no dia, o evento “Morro de Luz”, criado na rede social, teve mais de 300 confirmados. Uma greve dos trabalhadores do transporte público ocorrida no mesmo dia iria atrapalhar a mobilização, mas não a impediu de ocorrer com sucesso. Cada pessoa levou a sua lanterna, como havia sido pedido. A concentração foi no pé do morro, na alçada, próxima ao ponto de ônibus. A movimentação inicial corroborou o que já disse aqui: os usuários de drogas e mendigos não foram para o morro, se mantiveram distantes. O moro começava a ser um lugar vivo.

No alto do morro tudo o correu de forma difusa, as pessoas fizeram coisas diferentes. Haviam diversas formas de expressão artística: bolhas de sabão gigantes, recitais de poemas, performances de clowns, músicos, projeção de imagens, e, é claro, as dezenas de lanternas que iluminavam tudo. Houve caminhada noturna pelas trilhas esquecidas. Viu-se a cidade de dentro da “floresta proibida”. Dois grandes holofotes deram o ultimo toque especial à intervenção, projetando poderosos feches de luz ao céu. Do lado de fora os transeuntes e usuários do transporte coletivo (os ônibus haviam voltado a circular parcialmente) olhavam com olhos curiosos para um Morro da Luz com luz, iluminado, movimentado.

Não havia perigo no Morro da Luz. A experiência foi transformadora, para o morro e para os participantes da intervenção. Várias fotos foram postadas, em tempo real, para que as pessoas que não puderam sair de casa, por causa da falta de ônibus, pudessem acompanhar tudo pela internet. O ato também recebeu cobertura da mídia local, o que transformou nosso experimento artístico em um experimento político também. No mesmo dia o governador do estado foi preso junto com outros políticos importantes, o que simboliza o descaso do poder público com demandas reais da sociedade. Muitas pessoas começaram a cobrar melhoria para o Morro. Os secretários do prefeito da cidade tiveram que responder a várias ligações de repórteres que começaram a questionar o motivo da escuridão em um morro chamado Luz.

Toda tradição depende da interação - ação intetegrada, ação de vários atores que fazem a diferença em uma rede. Atores que conseguem transformar em algo diferente o que sai daquilo que entra. Os experimentos em arte e política, feitos para imaginar e propor mundos novos, novas formas de habitar locais ou de pensar a cidade, apresentam-se, portanto, em um fator-chave para pensar a tradição. O Morro da Luz, como um ator social, só fará a diferença se for incluído em redes de atores diversos e heterogêneos que farão ele se mover ao mesmo tempo em que serão por ele movidos. Voltar ao morro é preciso. Ocupá-lo.
Caçar actantes, na verdade, é criar actantes. É dar um empurrãozinho nos atores para que eles possam agir por si mesmos. Se antes a tradição relacionada ao Morro da Luz era aquela do mutismo, da não-diferença, da invisibilidade, hoje temos um exemplo de como o Morro poderia ser. Hoje temos o Morro como um ator por si só, que reivindica sua luz porque ele é então considerado nos cursos de ação alheios. É isso o sair da invisibilidade, o poder agir e fazer a diferença.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993, 5ª ed

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002

LATOUR, B. Some Experiments in Art and Politics, e-flux journal 23, 2011

LATOUR, B. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador: Edufba, 2012

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 9ª ed.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2003



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