quinta-feira, 26 de junho de 2014

De não-lugar ao espaço: A ocupação do Morro da Luz

Licia Fassarella Carneiro


            Como resultado da disciplina de Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I: Conceitos, Diálogos e Horizontes, ministrada pela professora Doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, a intervenção urbana denominada “Morro de Luz” foi realizada no dia 20 de maio de 2014 e organizada pelos alunos da disciplina, juntamente com o Coletivo à Deriva.

            O Coletivo à Deriva é formado pelos membros do grupo de pesquisa Artes Híbridas: intersecções, contaminações, transversalidades – e está constantemente realizando intervenções urbanas na cidade de Cuiabá. Uma marca do grupo são as intervenções feitas com guarda-chuvas.

Intervenção do Coletivo à Deriva
Foto: Maria Thereza de Oliveira Azevedo

A experiência para a escolha do lugar ocorreu durante as aulas ministradas pela professora. Depoimentos eram dados pelos alunos e através deles palavras-chave iam surgindo, como territorialização, solidão e ocupação, por exemplo. Essas palavras moldavam a intervenção e definiam seu objetivo. Muitas vezes, durante os depoimentos, ideias de lugares e ações iam surgindo.

Como havia chegado à Cuiabá havia pouco tempo, não conhecia muito da cidade e não pude contribuir muito em sala com ideias para um local de intervenção. Durante as discussões nas aulas, foram surgindo várias ideias de locais que poderiam abrigar uma intervenção urbana. Quando a ideia de iluminar o Morro da Luz surgiu, a aprovação foi tímida, pois o Morro tinha uma aura de insegurança. Aquela era a primeira vez em que eu ouvia falar do lugar, completamente desconhecido por mim. Em sala decidimos que no dia usaríamos camisetas estilizadas com os dizeres “Morro de Luz” na frente, e “Coletivo à Deriva” na parte de trás.

            O Morro da Luz é nomeado oficialmente Parque Antônio Pires de Campos e foi inaugurado em 22 de maio de 1925. Segundo a página da Câmara Municipal de Cuiabá é “Desaconselhável caminhadas pelo local, pois é área de risco, sem policiamento.” (CUIABÁ, s.d.). Apesar de ponto turístico, o Morro causava medo e insegurança a todos que transitavam ao seu redor. Ele era ocupado por sem tetos e pessoas de baixa renda que iam ali para consumir drogas.

Uma intervenção urbana no Morro teria a intenção de chamar a atenção para as péssimas condições em que se encontrava o Parque. Através dos relatos de companheiros de sala, descobri que nem sempre o Parque esteve naquela situação de abandono. Ele já havia sido ponto de encontro para amigos e namorados. Uma intervenção era necessária para tornar o Morro da Luz visível novamente para a cidade. Como explica Wagner Barja sobre a relação entre cidade e intervenção,

Entender a cidade, seus atores e seus equipamentos públicos como um meio e suporte flexível e também um lugar predestinado a esse modelo de arte é pensar e querer dar conta de uma determinada sociedade e de seus possíveis. Intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra interrelacional com o seu meio, por mais complexo que seja, considerando-se o seu contexto histórico, sociopolítico e cultural. (2008, p. 214)

            A chegada no Morro estava marcada para o final da tarde, para que todos pudessem se reunir e subir antes de anoitecer.  Foi a primeira vez que fui ao Parque, antes da intervenção só tive contato com o local através de fotos. Durante a subida, com o pôr-do-sol ainda clareando o local, lembro-me de não achar o Morro tão abandonado e sujo como imaginava. Antes de chegarmos ao ponto escolhido para a intervenção, porém, já era percebido o descaso em relação à limpeza do local.

            Ao anoitecer, pude me certificar do que os colegas tanto falavam sobre o Morro da luz: não havia iluminação pública. O parque ficava na completa escuridão, exceto pelo espaço ocupado pelos cerca de cinquenta participantes da intervenção que portavam lanternas. Um pequeno grupo composto por mim e outros alunos explorou o restante do parque e se não tivéssemos lanternas conosco não conseguiríamos ver absolutamente nada à frente. Um tempo depois, chegaram dois canhões de luz que iluminaram ainda mais o local.

A total escuridão no Morro era evitada pela luz das lanternas dos participantes
Foto: Frank Cesar Busatto

O estado de abandono e descaso em relação ao Morro da Luz pode ser relacionado ao conceito de não-lugar formulado por Marc Augé. O não-lugar, para o autor, surge na supermodernidade, caracterizada pela aceleração e pela continuidade sócio-cultural, e não pela ruptura. Os não-lugares seriam lugares de passagem, transitórios, que não é ocupado pelos cidadãos. Augé explica: 

Se um lugar se pode definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar. A hipótese aqui defendida é que a supermodernidade é produtora de não-lugares [...]. [...] um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero [...]. (2005, p. 67)

            O Morro da Luz era temido por todos os indivíduos que ali passavam. Logo, era um lugar não frequentado, que não guardava histórias ou identidade. Apesar de haver um ponto de ônibus exatamente em frente ao Parque, os cidadãos não viravam para olhar o Morro. Era como se ele não existisse ali.

            Se para Augé o lugar é o antagônico do não-lugar, que possui história e identidade, para Michel de Certeau o termo “espaço” é que antagoniza positivamente o termo “lugar”. Para o autor, lugar é “[...] uma configuração instantânea de posições. Implica uma relação de estabilidade” (1998, p. 201). Um lugar é uma organização espacial sem significado. O autor diferencia “lugar” de “espaço” relatando:

Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito. (1998 p. 202)

            As pessoas, através de suas ações e apropriações, transformam o lugar em espaço e dão significado ao mesmo com suas experiências. No caso do Morro, os participantes da intervenção, através de suas vivências, transformaram o lugar em espaço.

            O “Morro de Luz” recebeu atenção da mídia, que produziu matérias convocando a população para participar. Uma equipe de uma emissora de televisão também estava presente e fez uma matéria com participantes sobre a intervenção. Os esforços de todos tinham como objetivo reiluminar e reocupar o Parque como parte da cidade. Após a intervenção, a prefeitura pôs novas lâmpadas que finalmente deixaram o Morro iluminado.

Referências Bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Lisboa: 90 Graus Editora, 2005.

BARJA, Wagner. Intervenção/terinvenção: a arte de inventar e intervir diretamente sobre o urbano, suas categorias e o impacto no cotidiano. Revista Ibero-americana de Ciência da Informação (RICI). v.1 n.1, p.213-218, jul./dez. 2008. Disponível em: < http://seer.bce.unb.br/index.php/RICI/article/viewFile/816/2359>. Acesso em: 20 Jun. 2014.

BINGE, João Luis. Não-Lugares – Marc Augé. Revista Antropos. v. 2 a. 1. Maio de 2008.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.

CUIABÁ, Câmara Municipal de. Pontos turísticos: Parque Municipal Morro da Luz - Antonio Pires de Campos. Disponível em:<http://www.camaracba.mt.gov.br/index.php?pag=tur_item&id=32>. Acesso em: 24 Jun. 2014.

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