quinta-feira, 12 de junho de 2014

Flanerie no "Morro de luz"



Mirian Barreto Lellis

 Como proposta de reflexão a cerca das intervenções de urbanas estudadas na disciplina de Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas I do programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT, ministrada pela professora Dra. Maria Thereza Azevedo, realizamos com o apoio do Grupo Coletivo à Deriva, a vivência de uma intervenção denominada “Morro de Luz”. Os alunos de Pós-graduação se mobilizaram para organizar o evento e o local escolhido foi o Parque Antônio Pires, por ser de grande importância histórica e cultural da cidade de Cuiabá o qual, hoje, encontra-se em situação de abandono e que figura no imaginário da população como um local “mal assombrado”.
Partindo desta perspectiva este texto propõe contar a minha experiência nesta iniciativa, refletindo sobre a realidade do lugar, mostrando a sua relação com o imaginário, a memória e a identidade visual do Morro da Luz aos olhos do flâneur.

Foto: Frank César Bussato
Um pouco de História

O Parque Antônio Pires Campos ou Morro da Luz, como é popularmente conhecido, é um parque urbano e ícone da cidade de Cuiabá, em Mato Grosso. Está localizado na parte central da cidade, constituído de aproximadamente três hectares de mata verde apresentando-se como reserva de várias espécies arbóreas do cerrado como o Ipê, Jacarandá, Jatobá, a Lixeira, entre outras.  
O Morro da luz representa parte importante da história cuiabana, uma época que marca a chegada da modernização na cidade através da implantação de uma rede de energia elétrica. Em 1928 instalou-se a primeira subestação da usina do Rio da Casca, que fazia a distribuição da energia na cidade passando, assim, a figurar na cultura cuiabana como um divisor de águas, registrando para sempre sua importância na memória da cidade. 

Olhos de flâneur: uma experiência sensorial 

Quando a atividade foi proposta fui me informar sobre o ponto escolhido para a intervenção – o Morro da Luz, já que eu não sou de Cuiabá e não conheço muito da cultura e dos saberes locais. Primeiro fui à internet onde pude conhecer a rota que faria para chegar ao local, bem como um pouco da sua história. Mas não havia muitas informações e detalhes, então fui perguntar para alguns populares e para a minha surpresa, em unanimidade, falaram que o local era um ponto de coletivo importante porque dá acesso a muitos bairros, mas que também era um lugar abandonado, ruim, perigoso, até “mal assombrado” é, hoje, ponto do tráfico de drogas.
Munida da perspectiva de Baudelaire sobre a cidade, convidei-me a fazer um exercício utilizando os “olhos de flâneur”, ao qual institui que a flâneur “não se nutre apenas do que está sensorialmente sob os seus olhos, mas se apropria também, do saber contido (...) como se eles fossem algo experimentado e vivido” (ROUNET, 1992, p.50; cita BENJAMIN, p. 525). Sendo eu, a partir daquele momento um flâneur a praticar a flanerie pela cidade, percorrendo o Morro com um olhar experimentado de sensações, verdades, história e imaginação.
 Então, fui até o Morro para uma visita de reconhecimento. Chegando ao local, avistei o tão popular ponto de ônibus, os muitos cartazes pregados nas suas paredes e nos postes, anunciam a grande quantidade de informações que por ali se fixam papéis de todos os tamanhos, coloridos ou em preto e branco e dentre eles um ganha a minha atenção, sobre as letrinhas ergue-se o desenho de uma flor com uma mensagem simples, desejosa e ao mesmo tempo um desabafo: “que eu seja mais otimista”. Realmente uma delicadeza, um pequeno gesto de alguém que ainda acredita nas "miudezas" da vida. Este achado me tocou profundamente, como se estivesse preparando o espírito para o que se seguiria ainda naquele dia. 

 
Foto: Mirian Barreto Lellis

O ponto possui enorme movimentação, chegada e partida de pessoas caracterizam o lugar. As faixadas, os telhados, portas e janelas bem como os letreiros, luminosos e os semáforos alertam e tentam ganhar a atenção dos transeuntes nessa correria desenfreada. Os buracos na calçada, os bueiros, o burburinho dos comerciantes locais, os carros passando num vai-e-vem frenético, os passos apressados dos pedestres sob o sol quente, agitam a cidade e informam que monotonia não mais existe neste local. Mas de repente, por uma fração de segundo, esse pensamento muda quando senti o cheiro de groselha do sorveteiro do ponto de ônibus, o aroma me fez recordar a infância, percebo que o tempo passa, a cidade muda, sofre alterações estéticas e comportamentais, mas algumas coisas parecem permanecer atemporais, como os sorvetes e picolés vendidos nos carrinhos ambulantes. Então, compreendendo que a cidade é tudo para o flâneur, é seu palco e objeto de suas reflexões, simultaneamente. “A cidade se desdobra diante dele em seus polos dialéticos. Ela se abre diante dele como paisagem” (BENJAMIN, ANO, p. 525 in: ROUNET, 1992, p. 50).
Continuando a flanerie, observei as árvores altivas e verdes que formavam um contraste entre os prédios comerciais do entorno, prefigurando um contraste entre o moderno e o antigo, entre o presente e o passado. Mais á frente tive fácil acesso ao tão difamado parque municipal por meio de uma escada que leva e uma trilha a qual percorre todo o morro atravessando-o de um lado ao outro. Esse antigo caminho feito para facilitar a mobilização das pessoas no início do século XIX, permanece ainda com suas pedras irregulares que nos faz imaginar o passado longínquo vividos em outrora, mas que hoje não são mais utilizados com esse propósito. O espaço é realmente fresco, o vento soprava levemente envolvendo as folhas das árvores em uma valsa constante embalada pelo canto dos pássaros. E foi só então que me dei conta de que de cima do morro quase não se houve o barulho frenético da cidade, dos carros, das pessoas, á margem de uma das principais vias arteriais da cidade, Avenida da Prainha, o coração pulsante de Cuiabá.
            Entendo que os olhos do flâneur deve se ater não só para o espetáculo, para a modernização, mas também para o que a cidade procura esconder. Dentre todas as sensações boas que a flanerie me proporcionou não posso deixar de registrar a situação de abandono que se encontra o morro, ocasionado pelo acumulo de folhas secas das árvores e dos lixos, um odor fétido de urina que arde as narinas, denunciam a grande quantidade de mendigos e sem tetos que vivem ali, anunciando as mazelas que brotam da vida urbana. A falta de iluminação, corrobora para a multiplicação de prostitutas, traficantes e usuários de drogas que frequentam o Morro, e mesmo à luz do dia, cometem delitos aos olhos de quem quiser ver e sem repreensão alguma das autoridades competentes. A decepção foi enorme ao observar que, um local tão bonito e bem localizado, é, hoje, palco para a prática de crimes, uma ironia contrastante ao seu nome: Morro da Luz, que nos remete a pensar em algo luminoso, claro puro, mas que, atualmente, povoado pela obscuridade social, pela marginalização, pelas bitucas de cigarros de maconha, o crack e outras drogas.
Após esse primeiro contato, motivada a reinventar aquele local por meio da poética urbana ou fuleragem como institui Medeiros (2013) quando afirma que o termo “quer se instalar em todos os cantos, recantos, meandros. Sub-repticiamente, surpreende o transeunte tornando-o errante. A fuleragem compõe com a cidade, com a web, com a rua, com o outro”. Eu ansiava pelo processo de criação coletiva, por meio da errância, compondo naquele cenário novos olhares, mediando novas reflexões. Assim, disse um até breve ao Morro da Luz.
A intervenção “Morro de Luz” foi marcada para o dia 20 de maio de 2014, e contamos com o apoio da rede social para mobilizar artistas e pessoas que se sensibilizaram com a causa, só pedindo a eles disposição e lanternas para iluminarmos o espaço, estigmatizado pela sociedade como um local esquecido e marginalizado.  Ao final da tarde daquela terça-feira, munida de lanterna, me reuni aos outros intervencionistas para alterar o cotidiano, recriar aquele espaço e reivindicar maior atenção para o morro, a fim de coloca-lo novamente na mente e no convívio das pessoas.
 
  Foto: Alle Rodrigues


Adotando os olhos do flâneur, subimos o Morro da Luz para levar luz aquele local. Apesar da quantidade de lixo que ainda estava lá, não avistei os “excluídos da sociedade”, talvez por causa da movimentação no espaço, eles tenham se sentido acuados. O vento ainda soprava seu frescor e o sol já estava dizendo adeus, os pássaros estavam se recolhendo e não mais se ouvia os seus cantos. Subindo os degraus de pedras e iluminando a trilha já se ouvia o som da flauta ecoando no morro e a cada passo dado em silêncio senti que aquela ação não era um simples caminhar, mas um andar corporificado, performático, artístico, quebrava-se ali a resistência e o estigma cristalizado pela sociedade ao longo dos anos. E foi uma experiência fabulosa, com música, dança e performances, iluminados pela luz das lanternas e as bolhas de sabão que dançavam no ar ao toque do vento, formando ali um clima fantasioso e até em certos momentos nos lembrando das brincadeiras de criança. Os transeuntes que passavam ali na rua eram atraídos curiosos pelas luzes que literalmente transformou o Parque em um “Morro de luz”. Aquele dia, aquele espaço, aquelas pessoas, tornaram-se arte.
Senti que atingimos o objetivo proposto e por meio da fuleragem, Medeiros (2012, p.78) afirma que a “performance de rua inscreve, escreve, escorre no corpo da cidade para aí deixar sua cicatriz. Sinal nomadizante que torna possível uma dimensão poética”. Dessa forma, a intervenção resultou exatamente nesse ato de marcar o espaço urbano pela poética instituindo um marco para a mudança comportamental e estética do morro. Acredito que Realmente modificamos aquela realidade, resignificando a paisagem, observando e nos apropriando daquele espaço como o flâneur baudelariano do século XIX.

 ______________________________________________ 

Referências

BENJAMIN, Walter, Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo, p. 185-186. Disponível em  http://pt.scribd.com/doc/71723847/Um-Lirico-no-Auge-do-Capitalismo-Charles-Baudelaire. Acesso em: 12/06/2014.
ROUANET, Sergio Paulo. A cidade que habitam os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin “trabalho das passagens”. Revista da USP, n. 15, 1992, p. 50.
MEDEIROS, Maria Beatriz. Corpos Informáticos.  Revista do Programa de Pós-graduação em ciência da informação da Universidade de Brasília. Museologia & Interdisciplinaridade, Vol. II, nº. 03. Brasília: Editora UNB.
___________. Arte, performance e rua. Revista Artefilosofia. Ouro Preto: Editora UFOP, nº 12, ano 2012 Disponível em http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_12/%287%29Medeiros.pdf. Acessado em 12/06/2014.

2 comentários:

  1. Respostas
    1. Legal a postagem, Alle, eu estava sem iniciativa do meu. Agora vou conseguir tambem. Obrigada!

      Excluir