João Paulo de
Oliveira Carmo
Cuiabá é uma cidade que
valoriza suas tradições e seus patrimônios culturais e naturais, mas bem na sua
região central está o Morro da Luz, um lugar pouco conhecido pela população,
ainda que faça parte da paisagem cotidiana de milhares de cuiabanos que
transitam por uma das regiões mais movimentadas da cidade, a Avenida Tenente
Coronel Duarte. Este paradoxo foi uma das razões para a intervenção urbana
organizada pelo Coletivo à Deriva, fundado pelo Grupo de Pesquisas e Artes
Híbridas do ECCO (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea) no Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato
Grosso. Sob a liderança da professora Maria Thereza Azevedo, o Coletivo à
Deriva conta com a participação de artistas e não artistas de múltiplas áreas
em torno de um objeto em comum: a cidade.
O local batizado de Parque
Antônio Pires de Campos passou a ser conhecido como Morro da Luz devido à
existência de uma antiga usina fundada em 1928 que fazia a distribuição de
energia elétrica para a cidade. Hoje o parque possui diversas trilhas e praças
em seu interior, além de uma diversidade de árvores nativas que contrastam com
o ríspido ambiente de concreto circundante, como o jacarandá, o jatobá e três
variações do ipê (amarelo, roxo e branco).
Porém, esta região que deveria
representar um conforto para o agitado ritmo da vida urbana, na verdade desperta
insegurança e medo entre as pessoas que circulam ao seu redor, principalmente
durante a noite, quando a escuridão absorve todo o espaço ocupado pelo parque. Não
há iluminação pública e nem policiamento no local, tornando-o ponto de encontro
de usuários de drogas e também de constantes assaltos aos transeuntes e
usuários de ônibus que passam pelas proximidades.
Choca o fato de que um
parque como o Morro da Luz encontra-se abandonado pelas autoridades
responsáveis em preservar e proteger os patrimônios naturais dos cuiabanos. O
morro que desponta acima das estruturas de concreto e do asfalto da região
central ironicamente é engolfado pelas trevas que se opõe ao nome pelo qual
ficou conhecido e se tornou referência entre a população. Foi a partir deste
jogo de contrastes, entre o nome do lugar e a atual realidade, entre a história
e o cotidiano deste cenário urbano, que o Coletivo à Deriva desenvolveu a
intervenção urbana Morro de Luz, uma ação de levar luz ao morro que já não
possuía mais luz.
A ideia do Morro de Luz
foi iluminar com lanternas, canhões de luz e outros objetos luminosos o local
que estava sendo esquecido, chamando a atenção da população e da mídia para a importância
de voltar os olhos para um bem que é de direito da população usufruir e não se
sentir repelida pelas ameaças geradas por seu abandono. A intervenção Morro de
Luz ocorreu durante o pôr do sol no dia 20 de maio de 2014, mas o interessante
foi observar que, apesar do ato de subir o morro com as lanternas ligadas ter
sido programado para uma data e horário específicos, ele já estava existindo de
uma forma bastante dinâmica muito tempo antes através da internet, por meio do
blog www.morrodeluzcuiaba.blogspot.com.br e do Facebook.
Morro de Luz foi uma ação
coletiva que não se manifestou unicamente pela ocupação física do morro pelas
pessoas. A coletividade responsável pela execução do projeto se deu através da
internet, pela qual uma diversidade de pessoas interessadas na proposta pôde
construir por conta própria a essência do evento que só se consolidaria
presencialmente semanas depois de sua divulgação. No artigo Trabalho colaborativo e em rede com a
cultura (2010), Fayga Moreira, Gustavo Jardim e Paula Ziviani corroboram
com a importância da internet para a realização de projetos que envolvem um
coletivo participativo, posto que
ainda que o trabalho
colaborativo e as redes não dependam das tecnologias de informação e
comunicação, é inegável que estes novos canais de comunicação (primordialmente,
a internet) tenham facilitado estas formas de intervenção social,
principalmente ao “encurtar” as distâncias entre atores com objetivos em comum
(MOREIRA; JARDIM; ZIVIANI, 2010).
Assim, a intensa fluidez
da informação redimensiona o espaço público e promove maior interatividade e
interconectividade entre os indivíduos, alterando também as relações de
tempo-espaço e as mediações culturais. Neste âmbito, a intervenção Morro de Luz,
enquanto produto colaborativo, se beneficiou da internet no sentido de contar
com a interação dos participantes em um processo de criação independente de
hierarquias de atividades rígidas, sendo que as especialidades de cada um
contribuía com o mesmo grau de importância para o resultado que se mensurava a
cada postagem no blog ou na página criada no Facebook. Neste processo criativo
cada pessoa contribui para o
trabalho colaborativo a partir das experiências que possui, mas a contribuição
só se torna efetiva quando se compromete com os objetivos traçados, ou seja, na
medida em que estabelece relações e conexões com os demais, elaborando
propostas concretas a partir de seu campo de atuação (MOREIRA; JARDIM; ZIVIANI,
2010).
Como aponta Priscila
Arantes em O Impacto Dos Weblogs: Geopolítica, Compartilhamento e Filosofia Open
Source, Foucault criou o
termo políticas tecnológicas para abordar as atuais estratégias políticas
desenvolvidas pela sociedade capitalista e também para descrever justamente
esta estreita sinergia entre os recursos tecnológicos e a sociedade, que tende
a gerar uma rede rizomática de conhecimento e de informações construída de
forma compartilhada e coletiva. Para Deleuze, este rizoma corresponde à junção
de multiplicidades na forma de uma matilha, agregadas metamórfica e
desterritorialmente,
não existem mais igualdades
e nem menos hierarquia nas matilhas do que nas massas, mas elas não são as
mesmas (...) a matilha, mesmo em seus lugares, constitui-se numa linha de fuga ou
de desterritorialização (...) na matilha, cada um permanece só, estando com os
outros; cada um efetua sua ação ao mesmo tempo em que participa do bando (DELEUZE,
1995:47)
A
ação registrada na página criada no Facebook e no blog corrobora com esta marca
da colaboração, ou seja, do compartilhamento de informações e ideias através de
uma multiplicidade desterritorializada, ainda que tratasse de um objeto bem localizado
geograficamente.
Esta
questão da “desterritorialidade” remete ao conceito de virtual trazido por
Pierre Lévy. Para ele, toda entidade “desterritorializada” é considerada
virtual, sendo capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes
momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou
tempo em particular (LÉVY, 1999). O uso do Facebook feito pelos participantes
da intervenção Morro de Luz traduz esta forma de participação virtual de um
evento coletivo, visto que o evento marcado para uma data específica já ocorria
semanas antes por meio dos comentários, sugestões e confirmações de presença
através da rede social.
Virtualmente
o Morro de Luz passou a existir no momento em que sua página no Facebook e o
blog foram criados. De acordo com Lévy (1996), no sentido filosófico, virtual é
quilo que existe apenas em potência e não em ato, sendo encontrado antes de sua
realização efetiva ou formal (assim como uma árvore que existe virtualmente em uma semente). Foram
convidadas para a intervenção 4.400 pessoas pelo Facebook, das quais 337
confirmaram presença e outras 91 não deram certeza de comparecimento. Porém,
independente do número de pessoas que subiram o morro no dia 20 de maio,
virtualmente o Morro de Luz já estava acontecendo e gerando múltiplas formas de
participação entre os envolvidos – o virtual existe sem estar presente.
Este
processo de virtualização é encorajado pela extensão do ciberespaço[1] que articula toda uma
estrutura social e cultural na contemporaneidade. O desenvolvimento das redes
digitais interativas promove este estilo de relacionamento quase independente
de lugares geográficos e de coincidência de tempos, ou seja, as
particularidades técnicas do ciberespaço permite que qualquer membro de um
grupo, em quaisquer circunstâncias, possa comunicar, cooperar e coordenar
ideias com os demais integrantes associados. Tal processo de livre
compartilhamento caracteriza outro aspecto bastante atual que é a relação
estabelecida entre a circulação de informações e produções com a reivindicação
de sua autoria, que tem se tornado cada vez mais livre e independente (MOREIRA;
JARDIM; ZIVIANI, 2010).
André Lemos
discorre sobre a cultura contemporânea em sua interface com as novas
tecnologias de comunicação e informação para definir a ideia de cibercultura.
Lemos afirma que a cibercultura representa a possibilidade de ampliar a leitura
(de qualquer tipo, imediata e feita independente da localização geográfica) e a
produção de conteúdo (a livre escrita). Sendo assim, a forma como ocorreu
previamente a participação e aglomeração de pessoas em torno da proposta do
Morro de Luz corresponde exatamente aos princípios da cultura da leitura e da
escrita enfatizada por André Lemos no âmbito da cibercultura. Ou seja, a
liberação da emissão, com a inclusão da produção sem qualquer tipo de
autorização e que leva à criação de nichos entre pessoas que compartilham e se
relacionam em torno dos mesmos interesses, e a conexão generalizada, em que o
“poder falar” adquire sentido coletivamente e em rede.
O Morro da Luz permanece
na Prainha, ainda que nas sombras do esquecimento, e o Morro de Luz continua
existindo no espaço virtual, registrando todas as formas de participação e
contribuição dos internautas para a realização da intervenção urbana do dia 20
de maio de 2014. Como afirma Karla Schuch Brunet (2008), a intervenção Morro de
Luz cumpriu o seu propósito de se fazer presente e todo o processo colaborativo
realizado para promover a ação foi essencial para se construir esta forma de
experimentação do espaço público escolhido. Porém, a partir da articulação e da
associação de pessoas através da internet e das redes sociais, Morro de Luz foi
além da momentaneidade registrada na subida ao morro, transcendendo os limites
cronológicos e geográficos ao integrar a magnitude do ciberespaço.
ARANTES, Priscilla. Impacto dos
Weblogs: Geopolítica, Compartilhamento e Filosofia Open Source. In: NP 08 – Tecnologias da Informação
e da Comunicação do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2005.
BRUNET, Karla Schuch. Mídia locativa, práticas artísticas de
intervenção urbana e colaboração. Comunicação
e Espaço Público, Ano XI, nº 1 e 2, 2008.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.
Porto Alegre: Sulina, 2010.
LÉVY, Pierre. Cibercultura.
São Paulo: Editora 34, 1999.
_____. O que é o
virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
MOREIRA, Fayga;
JARDIM, Gustavo; ZIVIANI, Paula. Trabalho Colaborativo e em Rede com a Cultura. Gestão Cultural: Competência e
Desafios. No Prelo.
MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>.
Acesso em 21 jun. 2014.
[1]
De acordo com André Lemos (2010),
o termo ciberespaço foi criado pelo escritor
cyberpunk de ficção científica William Gibson para designar o espaço não
físico ou territorial composto por um conjunto de redes de computadores através
das quais todas as informações circulam sob as mais diversas formas.
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