sexta-feira, 27 de junho de 2014

Morro de Luz e o processo coletivo virtual de sua realização

João Paulo de Oliveira Carmo

Cuiabá é uma cidade que valoriza suas tradições e seus patrimônios culturais e naturais, mas bem na sua região central está o Morro da Luz, um lugar pouco conhecido pela população, ainda que faça parte da paisagem cotidiana de milhares de cuiabanos que transitam por uma das regiões mais movimentadas da cidade, a Avenida Tenente Coronel Duarte. Este paradoxo foi uma das razões para a intervenção urbana organizada pelo Coletivo à Deriva, fundado pelo Grupo de Pesquisas e Artes Híbridas do ECCO (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea) no Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso. Sob a liderança da professora Maria Thereza Azevedo, o Coletivo à Deriva conta com a participação de artistas e não artistas de múltiplas áreas em torno de um objeto em comum: a cidade.
O local batizado de Parque Antônio Pires de Campos passou a ser conhecido como Morro da Luz devido à existência de uma antiga usina fundada em 1928 que fazia a distribuição de energia elétrica para a cidade. Hoje o parque possui diversas trilhas e praças em seu interior, além de uma diversidade de árvores nativas que contrastam com o ríspido ambiente de concreto circundante, como o jacarandá, o jatobá e três variações do ipê (amarelo, roxo e branco).
Porém, esta região que deveria representar um conforto para o agitado ritmo da vida urbana, na verdade desperta insegurança e medo entre as pessoas que circulam ao seu redor, principalmente durante a noite, quando a escuridão absorve todo o espaço ocupado pelo parque. Não há iluminação pública e nem policiamento no local, tornando-o ponto de encontro de usuários de drogas e também de constantes assaltos aos transeuntes e usuários de ônibus que passam pelas proximidades.
Choca o fato de que um parque como o Morro da Luz encontra-se abandonado pelas autoridades responsáveis em preservar e proteger os patrimônios naturais dos cuiabanos. O morro que desponta acima das estruturas de concreto e do asfalto da região central ironicamente é engolfado pelas trevas que se opõe ao nome pelo qual ficou conhecido e se tornou referência entre a população. Foi a partir deste jogo de contrastes, entre o nome do lugar e a atual realidade, entre a história e o cotidiano deste cenário urbano, que o Coletivo à Deriva desenvolveu a intervenção urbana Morro de Luz, uma ação de levar luz ao morro que já não possuía mais luz.
A ideia do Morro de Luz foi iluminar com lanternas, canhões de luz e outros objetos luminosos o local que estava sendo esquecido, chamando a atenção da população e da mídia para a importância de voltar os olhos para um bem que é de direito da população usufruir e não se sentir repelida pelas ameaças geradas por seu abandono. A intervenção Morro de Luz ocorreu durante o pôr do sol no dia 20 de maio de 2014, mas o interessante foi observar que, apesar do ato de subir o morro com as lanternas ligadas ter sido programado para uma data e horário específicos, ele já estava existindo de uma forma bastante dinâmica muito tempo antes através da internet, por meio do blog www.morrodeluzcuiaba.blogspot.com.br e do Facebook.
Morro de Luz foi uma ação coletiva que não se manifestou unicamente pela ocupação física do morro pelas pessoas. A coletividade responsável pela execução do projeto se deu através da internet, pela qual uma diversidade de pessoas interessadas na proposta pôde construir por conta própria a essência do evento que só se consolidaria presencialmente semanas depois de sua divulgação. No artigo Trabalho colaborativo e em rede com a cultura (2010), Fayga Moreira, Gustavo Jardim e Paula Ziviani corroboram com a importância da internet para a realização de projetos que envolvem um coletivo participativo, posto que

ainda que o trabalho colaborativo e as redes não dependam das tecnologias de informação e comunicação, é inegável que estes novos canais de comunicação (primordialmente, a internet) tenham facilitado estas formas de intervenção social, principalmente ao “encurtar” as distâncias entre atores com objetivos em comum (MOREIRA; JARDIM; ZIVIANI, 2010).

Assim, a intensa fluidez da informação redimensiona o espaço público e promove maior interatividade e interconectividade entre os indivíduos, alterando também as relações de tempo-espaço e as mediações culturais. Neste âmbito, a intervenção Morro de Luz, enquanto produto colaborativo, se beneficiou da internet no sentido de contar com a interação dos participantes em um processo de criação independente de hierarquias de atividades rígidas, sendo que as especialidades de cada um contribuía com o mesmo grau de importância para o resultado que se mensurava a cada postagem no blog ou na página criada no Facebook. Neste processo criativo

cada pessoa contribui para o trabalho colaborativo a partir das experiências que possui, mas a contribuição só se torna efetiva quando se compromete com os objetivos traçados, ou seja, na medida em que estabelece relações e conexões com os demais, elaborando propostas concretas a partir de seu campo de atuação (MOREIRA; JARDIM; ZIVIANI, 2010).

Como aponta Priscila Arantes em O Impacto Dos Weblogs: Geopolítica, Compartilhamento e Filosofia Open Source, Foucault criou o termo políticas tecnológicas para abordar as atuais estratégias políticas desenvolvidas pela sociedade capitalista e também para descrever justamente esta estreita sinergia entre os recursos tecnológicos e a sociedade, que tende a gerar uma rede rizomática de conhecimento e de informações construída de forma compartilhada e coletiva. Para Deleuze, este rizoma corresponde à junção de multiplicidades na forma de uma matilha, agregadas metamórfica e desterritorialmente,

não existem mais igualdades e nem menos hierarquia nas matilhas do que nas massas, mas elas não são as mesmas (...) a matilha, mesmo em seus lugares, constitui-se numa linha de fuga ou de desterritorialização (...) na matilha, cada um permanece só, estando com os outros; cada um efetua sua ação ao mesmo tempo em que participa do bando (DELEUZE, 1995:47)

            A ação registrada na página criada no Facebook e no blog corrobora com esta marca da colaboração, ou seja, do compartilhamento de informações e ideias através de uma multiplicidade desterritorializada, ainda que tratasse de um objeto bem localizado geograficamente.
            Esta questão da “desterritorialidade” remete ao conceito de virtual trazido por Pierre Lévy. Para ele, toda entidade “desterritorializada” é considerada virtual, sendo capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular (LÉVY, 1999). O uso do Facebook feito pelos participantes da intervenção Morro de Luz traduz esta forma de participação virtual de um evento coletivo, visto que o evento marcado para uma data específica já ocorria semanas antes por meio dos comentários, sugestões e confirmações de presença através da rede social.
Virtualmente o Morro de Luz passou a existir no momento em que sua página no Facebook e o blog foram criados. De acordo com Lévy (1996), no sentido filosófico, virtual é quilo que existe apenas em potência e não em ato, sendo encontrado antes de sua realização efetiva ou formal (assim como uma árvore que existe virtualmente em uma semente). Foram convidadas para a intervenção 4.400 pessoas pelo Facebook, das quais 337 confirmaram presença e outras 91 não deram certeza de comparecimento. Porém, independente do número de pessoas que subiram o morro no dia 20 de maio, virtualmente o Morro de Luz já estava acontecendo e gerando múltiplas formas de participação entre os envolvidos – o virtual existe sem estar presente.
Este processo de virtualização é encorajado pela extensão do ciberespaço[1] que articula toda uma estrutura social e cultural na contemporaneidade. O desenvolvimento das redes digitais interativas promove este estilo de relacionamento quase independente de lugares geográficos e de coincidência de tempos, ou seja, as particularidades técnicas do ciberespaço permite que qualquer membro de um grupo, em quaisquer circunstâncias, possa comunicar, cooperar e coordenar ideias com os demais integrantes associados. Tal processo de livre compartilhamento caracteriza outro aspecto bastante atual que é a relação estabelecida entre a circulação de informações e produções com a reivindicação de sua autoria, que tem se tornado cada vez mais livre e independente (MOREIRA; JARDIM; ZIVIANI, 2010).
André Lemos discorre sobre a cultura contemporânea em sua interface com as novas tecnologias de comunicação e informação para definir a ideia de cibercultura. Lemos afirma que a cibercultura representa a possibilidade de ampliar a leitura (de qualquer tipo, imediata e feita independente da localização geográfica) e a produção de conteúdo (a livre escrita). Sendo assim, a forma como ocorreu previamente a participação e aglomeração de pessoas em torno da proposta do Morro de Luz corresponde exatamente aos princípios da cultura da leitura e da escrita enfatizada por André Lemos no âmbito da cibercultura. Ou seja, a liberação da emissão, com a inclusão da produção sem qualquer tipo de autorização e que leva à criação de nichos entre pessoas que compartilham e se relacionam em torno dos mesmos interesses, e a conexão generalizada, em que o “poder falar” adquire sentido coletivamente e em rede.
O Morro da Luz permanece na Prainha, ainda que nas sombras do esquecimento, e o Morro de Luz continua existindo no espaço virtual, registrando todas as formas de participação e contribuição dos internautas para a realização da intervenção urbana do dia 20 de maio de 2014. Como afirma Karla Schuch Brunet (2008), a intervenção Morro de Luz cumpriu o seu propósito de se fazer presente e todo o processo colaborativo realizado para promover a ação foi essencial para se construir esta forma de experimentação do espaço público escolhido. Porém, a partir da articulação e da associação de pessoas através da internet e das redes sociais, Morro de Luz foi além da momentaneidade registrada na subida ao morro, transcendendo os limites cronológicos e geográficos ao integrar a magnitude do ciberespaço.

Referências bibliográficas

ARANTES, Priscilla. Impacto dos Weblogs: Geopolítica, Compartilhamento e Filosofia Open Source. In: NP 08 – Tecnologias da Informação e da Comunicação do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2005.

BRUNET, Karla Schuch. Mídia locativa, práticas artísticas de intervenção urbana e colaboração. Comunicação e Espaço Público, Ano XI, nº 1 e 2, 2008.

LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2010.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

_____. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

MOREIRA, Fayga; JARDIM, Gustavo; ZIVIANI, Paula. Trabalho Colaborativo e em Rede com a Cultura. Gestão Cultural: Competência e Desafios. No Prelo.

MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>. Acesso em 21 jun. 2014.




[1] De acordo com André Lemos (2010), o termo ciberespaço foi criado pelo escritor cyberpunk de ficção científica William Gibson para designar o espaço não físico ou territorial composto por um conjunto de redes de computadores através das quais todas as informações circulam sob as mais diversas formas.

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