segunda-feira, 23 de junho de 2014

Espectros no Morro da luz

Daniela García Cano
                “E também complexos são os meios que determinam e produzem a singularidade com que nos vemos respectivamente, com a qual nos diferenciamos. Cada um de nós ordena e nomeia aquilo que vê, que escuta e que toca através de um sistema próprio de significados. A percepção é um exercício de confronto entre diferentes sistemas e sentidos. Estas tensões produzem a necessidade da criação de um campo poético, no qual a visão de mundo particular de cada um pode se tornar questionável. Com a criação deste campo poético, o indivíduo pode tornar sua visão singular de mundo em potencialidade.”
                Lilian Amaral

O sol se esconde trás os telhados, se fecha um telão, se abre outro que deixa ver as sombras nas arvores, as passagens, o cenário do artista. Luzes diferentes as universais, a do sol e a da lua, parecem brotar serenamente sobre os arvores. As pessoas, as lanternas, o morro, algo está sendo esculpido ali e não é propriamente uma escultura de Herê Fonseca.
Vinha-se gestando faz dois meses. O processo de organização inicia desde a fragmentação, a heterogeneidade, e a multiplicidade a partir de um exercício no qual cada pessoa fala sobre o que quiser falar. Ato que se refere à necessidade de encontrar realidades em nossas sensações como refúgios desconhecidos. Falar em voz alta para dar objetividade ao prazer subjetivo de pensar.
Esse exercício, mais que de fala, de dizer, evoca o processo colaborativo descrito por Antônio Araújo, refletindo sobre o teatro, “O processo colaborativo garante a existência de alguém (ou de uma equipe) especialista ou interessado em determinado aspecto da criação, que se responsabilizará pela coordenação das diferentes propostas, procurando sínteses artísticas, articulando seu discurso cênico ou concepção, e descartando elementos que não julgar convenientes ou orgânicos à construção da obra naquele momento.” (2006: 130 – 131)
O processo de construção com a participação de todos os integrantes, professora e estudantes num embate dentro da sala de aula para tentar criar juntos uma intervenção, e isso o que é chamado de processo colaborativo[1]Um espaço propositivo, trabalhando sem hierarquias, com funções móveis, uma encenação coletiva.[2]
A criação começa então na sala de aula, na universidade, para apresentar a reflexão deste espaço como gerador de problematizações, propostas de novas relações entre o individuo e a cidade a partir da articulação entre teoria e arte. O último é o interesse do Coletivo a deriva, que abriga a intervenção, estar na cidade e viver nela experiências coletivas estéticas com a adesão de artista e não artistas de múltiplas áreas de Cuiabá, e que para cada ação tem novas parcerias, novos olhares e experiências.[3]
Do ponto de vista cultural tenho a sensação que as coisas estão emergindo. E creio que as discussões nos grupos de pesquisa do ECCO tem colaborado com a criação de um pensamento crítico em torno das culturas e as artes locais. Os mestrandos e agora doutorandos do ECCO participam de Congressos, Simpósios e Encontros internacionais e nacionais com bastante desenvoltura e são bastante elogiados pelas suas pesquisas. [4]

Na conversa saíram temas como tatuagens, tempo, registro, memória, registro do instante, a marca e o tempo no corpo, luz e cor como forma de energia radiante, a cidade, a praça, os pontos de encontro, a solidão e a sensação de vazio e isolamento, deslocamento, desterritorialização e perda das referências, múltiplos territórios, comunicação, língua, humanização, escuta, nascimento e morte, música, Johann Sebastian Bach, olhos vendados, operações matemáticas, modelagem, criação, ordenamento, descaso, desamparo, impedimento produzido pelo sistema. Da reflexão sobre estes temas e os lugares tentativos, resultou a escolha do Morro da Luz como palco para a intervenção.
Ao escolher tal lugar, teve-se em conta a procura por um lugar que está produzindo ou contraproduzindo sentidos, e que dera um tom à intervenção de prática de resistência, que quer estabelecer um modo de ser  e estar no mundo, de ser e estar no Morro da Luz.
O Morro da luz se torna de um lugar abandonado a um espaço cultural atraves da pratica do coletivo. Começa desde o reconhecimento etnográfico do lugar, e a intervenção se da desde o fato de pedir para a administração limpar o lugar. Ainda lembrando as palavras de Hal Foster (1996), sobre o perigo de cair na ingenuidade ao tomar todo discurso artístico como teor politico e superestimar algumas atividades que tendem a interpretar a arte como resistência, citado por Henrique Mazetti. É importante falar do caráter deativismo tanto na reivindicação de um lugar, questionar como o morro sendo patrimônio histórico da cidade se torna um lugar abandonado, onde deveria ter atividades de ócio criativo, de iluminação.  A atividade estética e cultural tem dimensões políticas que mostram a expansão da cultura em todos os aspectos da vida e a estatização dos âmbitos politico, social e econômico.
A intervenção traz também o questionamento pela falta de estímulos e diversas dificuldades para o caminhante na cidade, além do correr da vida diária, das obrigações laborais, a planificação urbana faz de Cuiabá uma cidade pouco amigável com os caminhantes. Mas o Morro da luz é um lugar cheio de arvores que se presta para atividades feitas pelo simples fato de fazê-las, pelo ócio criativo. Trata-se então do questionamento à naturalização de nosso olhar, um ato de subversão cultural dentro do plano poético, uma forma de reclamar por aquele lugar, atentando contra a inercia, contra a tranquilidade do cotidiano; apelando por outro uso dos lugares que quebram com o estabelecido. Através da arte se propõe um exercício que põe em jogo o real, através da pratica da liberdade, viola e respeita essa realidade. Entendo arte no sentido proposto por Lilian Amaral, como provocadora de encontros, tecida e construída no espaço urbano e para o habitante urbano que define a plataforma de atuação como interação/intervenção e humana. Uma arte perto da cultura cotidiana, um cortejo de um grupo que vai em coletivo ao morro, em bloco iluminador.
De acordo com Francesca Gargallo[5], a arte é o lugar da denúncia do presente, mas é sempre histórico, atravessado pela articulação de diferentes grupos, e tecido em uma estrutura de relações impessoais.  Os artistas denunciam o horror, eles percebem o que está acontecendo e o capturam em gritos e narrações. Portadores da memória em gestação fazem ações no presente.
Neste caso, o morro que foi outrora um lugar de encontro para os namorados, para as crianças brincarem, famílias se reunirem, se torna em um lugar abandonado. A arte então, sai da oficina para a rua e devolve a vida, a socialização e a participação a través de ações efêmeras e sutis que interferem na cidade e no próprio sujeito urbano, a criação de emoções e expressões, mas que do medo, do pânico que permitem resinificar os espaços.
A intervenção foi feita em um momento onde começam se perceber conjunturas na cidade. Particularmente a participação das pessoas na intervenção que se viu afetada pela greve parcial do serviço de transporte urbano. Para promover a participação, foi criado um evento no Facebook que tinha mais de quatro mil convidados e mais de trezentas confirmações de participação. Não obstante, compareceram perto de cinquenta pessoas, estudantes, professores, artistas, e pessoal da mídia da cidade. Mas, não só se esperava a participação de artistas e fotógrafos, se esperava também a participação de pessoas não preestabelecidas, pessoas que decidiram participar com todas suas significações.
O lugar começou-se encher de radiação electromagnética, de espectros visíveis. A luz, das lanternas planeando pelo espaço, começa a viajar e se propaga em diferentes velocidades, começa se dispersar deixando ver seus diferentes componentes, suas cores, e ao encontrar-se com as arvores e as pessoas, surgem as sombras.
A Priscilla se tornou, de repente, uma menina ao jogar com bombas de sabão que na obscuridade ainda conseguiam mostrar a conjugação das cores. As bombas de sabão pareciam bombas de luz, a cor é luz e na obscuridade esse enunciado ainda pode ser verificado. Logo a bomba ia pousar sobre uma lanterna cuja luz lhe dava novas cores ate estalar, lembrando a agua, na luz da lanterna se olhavam as partículas que se espalhavam pelo ar.
Via-se desde o morro, o transito dos veículos, os indivíduos, a cidade imersa na sua cotidianidade, alheios, estrangeiros na sua própria cidade. Num momento a súbita luz do canhão brilha, parece que todo se para, os corações se param e todos são sensíveis. É um episodio efêmero, como um domingo na tarde duma terça-feira. As pessoas embaixo perguntando-se por aquelas luzes, mudando seu olhar ainda por um instante. Tal vez acreditando que se trata de fogos-fátuos ou fogos tolos.
               Enquanto alguns jogaram com bombas de sabão, o clarinetista tocava suas músicas, seguido do canto de um homem e sua guitarra que anima aos espetadores a cantar com ele, depois improvisa uma musica com conteúdo de protesto pelo abandono do morro. A luz da lanterna continuava viajando enquanto as luzes do canhão cortavam o céu cuiabano. Outros falavam, dançavam, caminhavam, e outros mais tiravam fotos.
Desta maneira, o morro da luz se torna, através da arte, no palco onde se dramatiza uma cena, onde todos são atores e espectadores, “A arte, ao fazer uma reflexão sobre a cidade, em perspectiva dialógica, pode contribuir para apontar a emergência da realidade urbana, de formas de sociabilidade pautadas pela apropriação e fruição de espaços e temporalidades múltiplas, reafirmando o direito à cidade, à vida urbana.”
Por outro lado, a forma em que é compartilhado o conhecimento e as reflexões geradas da atividade, através da Internet, apresenta também uma critica á noção de propriedade intelectual, que percorre o fluxo digital de informação e cultura. Ponte ao que refere Henrique Mazetti no seu texto "Resistências criativas: os coletivos artísticos e ativista no Brasil".
A participação dos meios de comunicação na intervenção já fala de outra instancia, à qual também refere a forma em que são documentadas as prática de encontro com o outro, da interação urbana e humana, em palavras de Lilian Amaral, de forma poética através de vídeo, fotografias e textos publicados em um blog. “Nós não trabalhamos com resultados, mas com uma experiência efêmera, atrações temporárias, que são micropolíticas, acontecimentos, devires, possibilidades. É como se, com aquela ação, uma outra experiência com o espaço, projetássemos outros possíveis. Os desdobramentos não são controlados por nós, mas eles acontecem.” [6]
As luzes brandas e as músicas invisíveis morrem no morro da luz, morrem sem dor, nos deixam perdidos na estrada de novo. As luzes eram brandas e as músicas invisíveis. 
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Lilian. CorpoPoético: uma cartografia do lugar. In: Anpap, 16º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais. Florianópolis. 2007, p 1429 – 1438.
ARANTES, Priscilla. Impacto dos Weblogs: geopolítica, compartilhamento e filosofia Open Source. In: NP 08 – Tecnologias da Informação e da Comunicação do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2005, p 10.
ARAÚJO, Antonio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. In: Sala Preta (USP) v. 6. 2006, p 127 – 133.
PIMENTEL CALDEIRA, Solange. Espaço e cidade. In: O lamento da imperatriz. A linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume. 2009
PIMENTEL CALDEIRA, Solange. Interatividade. Cinema, dança, teatro. In: O lamento da imperatriz. A linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume. 2009
MAZETTI, Henrique. Resistências criativas. Os coletivos artísticos e ativistas no Brasil. In: Revista Lugar Comum Nº 25-26, p. 105-120


[1] Ainda o processo conta com uma atividade preparatória e pessoas responsáveis de algumas tarefas, a intervenção urbana guarda um caráter de imprevisibilidade, na interrelaçao de multiplex actores pode acontecer qualquer coisa. Na intervenção “Morro de Luz” há uma iniciativa marcada pela cenografia das lanternas para transmitir uma mensagem de consciência.
[2] Embora a criação coletiva traz contradições como que nem todos os participantes sempre tem habilidades, ou interesse de assumir papéis diferentes. Desta maneira não se pode sublimar o trabalho colaborativo, ele continua tendo rasgos de utopia.
[3] Coletivo à Deriva, https://www.facebook.com/pages/Coletivo-à-Deriva
[4] Entrevista Professora Dra. Maria Thereza Azevedo por Tyrannus Melancholicus. “Poéticas e intervenções urbanas” 2014. Disponivel em: URL: <http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/noticias/4204/poeticas-e-intervencoes-urbanas>  Acceso em: mayo de 2014
[5] GARGALLO, Francesca. Historia, estética y resistência. Cultura y arte de cara al terror de estado. Anais do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual. Goiânia-GO:  UFG, FAV, 2014
[6] Entrevista Professora Dra. Maria Thereza Azevedo por Tyrannus Melancholicus. “Poéticas e intervenções urbanas” 2014. Disponivel em: URL: <http://www.tyrannusmelancholicus.com.br/noticias/4204/poeticas-e-intervencoes-urbanas>  Acceso em: mayo de 2014

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