domingo, 22 de junho de 2014

Morro de Luz: uma experiência corpográfica enquanto micro-resistência coletiva

Raquel Mützenberg

O espaço público e a experiência artística constituem, assim, aspectos da vida humana cuja dinâmica tanto promove quanto resulta dos modos de articulação entre corpo e seus ambientes de existência”. 
(Fabiana Dultra Pinto e Paola Berenstein Jacques)


Neste ensaio tratarei da experiência urbano-poética “Morro de Luz”, realizada no dia 20 de maio de 2014 pelos integrantes do Coletivo À Deriva e convidados, no Parque Antonio Pires de Campos – o Morro da Luz – em Cuiabá.

            O Coletivo À Deriva atua em Cuiabá desde 2009 com as questões relacionadas às estéticas urbanas emergentes: poéticas urbanas ou intervenções urbanas, performances e outros, e tem uma grande conexão com a arte e culturas contemporâneas. Essas experiências, explica a professora provocadora do coletivo, Maria Thereza Azevedo, geram um trabalho de campo propício para estudos relacionados às micropolíticas, às novas sociabilidades no estar junto, à partilha do sensível, à projeção de mundos possíveis.

            “Morro de Luz” é uma intervenção poética pensada e realizada enquanto uma micropolítica de resistência à situação em que se encontra o Parque Antonio Pires de Campos. Após intensas discussões em sala de aula para definição da próxima ação do Coletivo À Deriva, a professora Maria Thereza Azevedo optou por provocar os integrantes individualmente. Cada um teve a oportunidade de se expressar como quisesse e sobre o que quisesse, as afetações coletivas e individuais tiveram ali um momento de desabafo quase terapêutico para a criação da futura ação coletiva. A partir de palavras pescadas de cada discurso expresso neste momento, o Coletivo buscou um lugar na cidade que seria a materialização daqueles sentimentos quase unânimes: desamparo e angústias luminosas. Tínhamos, então, nosso espaço definido: o Morro da Luz.

            Envolvido por um ar de medo e desconfiança generalizado, o Morro da Luz é um parque arborizado no coração de Cuiabá. Palco do nascimento da cidade, passou a ser conhecido como Morro da Luz em 1928 devido à instalação da primeira estação de distribuição de energia elétrica em Cuiabá. Hoje, a cidade quase o engole, o envolve em concreto em todos os seus limites. Mas o parque em si tornou-se o desamparo materializado. Apesar do nome “Morro da Luz”, após o pôr-do-sol a escuridão assola. Não fosse apenas esta moléstia, durante as visitas que o Coletivo realizou ao Morro da Luz antes da intervenção, foram flagrados vestígios nas trilhas e praças do parque que revelam os problemas que a cidade esconde por não ter melhor solução: uso e tráfico de drogas, moradores de rua e assaltos. Entre os integrantes do Coletivo, alguns citaram que já houve um tempo em que aquele era um espaço tranqüilo e ponto de encontro de namorados. No entanto, a realidade comum aos integrantes é que todos já foram vítimas ou conheciam alguém que já foi assaltado na calçada que permeia os limites do parque – limites estes que não são isolados: um dos maiores e mais frequentados pontos de ônibus de Cuiabá encontra-se nesta calçada.

            O medo do Morro da Luz não é apenas uma sensação coletiva fruto de boatos. Está legitimado no site oficial da Câmara Municipal de Cuiabá em texto sobre o parque: “Desaconselhável caminhadas pelo local, pois é área de risco, sem policiamento” (CUIABÁ, s.d.).

            Todas estas características afetam os habitantes da cidade corpograficamente. Esperar um ônibus no ponto do Morro da Luz gera uma tensão interna e uma atenção física diferente de estar nos demais pontos de ônibus de Cuiabá. Frequentar o local conhecido como perigoso, apenas por necessidade, gera uma pressa de estar longe dali e uma resistência àquele espaço. Sem a devida atenção do poder público, o espaço deixou de existir no imaginário dos habitantes enquanto um parque arborizado e um possível local de lazer. O parque Morro da Luz deixou de ser vivenciado pelos habitantes, não existem ali histórias de vida acontecendo além de fatos relacionados às suas moléstias. Estar no Morro da Luz tornou-se sinônimo de correr um risco. O parque perdeu a vida pois não é mais praticado enquanto parque, mas enquanto um local esquecido.

            Busco em Guy Debord o conceito de espetacularização para aplicar à cidade de Cuiabá. O esquecimento de um parque arborizado no centro da cidade por parte do poder público pode ser explicado como uma consequência da espetacularização da cidade. O parque Morro da Luz não foi incluso nos planos da administração pública enquanto um cenário para ser visto nem vivido. Tornou-se inóspito e, com a diminuta participação cidadã - resultante da espetacularização da sociedade como um todo, a prática corporal da cidade enquanto prática cotidiana, estética ou artística inexistem.

A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da sua necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda parte (DEBORD, 1992, p. 26).

            Ainda para Debord, o homem alienado daquilo que produz, mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela (DEBORD, 1992, p.27). O Morro da Luz, apesar de abranger uma área de três hectares no centro de Cuiabá, está alienado à cidade. As construções que o rodeiam lhe dão as costas, quem espera no ponto de ônibus está sempre de costas para o parque e quem passa a pé por ali aperta o passo à procura de outras calçadas.

Paola Berenstein Jacques traz a noção de corpografias urbanas enquanto um conjunto de condições interativas que o corpo sintetiza e expressa em uma corporalidade. Partindo da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita no corpo e que vivemos em uma sociedade espetacularizada na qual existe uma redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade. Os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. O espaço só é vivo quando é vivido. E mais, Milton Santos apud Amaral explica que o lugar é o espaço praticado. De acordo com a prática realizada em cada espaço, este se corporaliza também, torna-se um corpo. O Morro da Luz enquanto um lugar praticado apenas marginalmente, apesar de sua localização geográfica, tornou-se a marginalidade cuiabana materializada.

A corpografia urbana de resistência se dá quando um corpo experimenta um espaço urbano não espetacular. A intervenção realizada no Morro da Luz teve o objetivo simples de resistir enquanto um “morro de luz”, ou seja, o morro passaria a ter na sua existência um momento de “vida iluminada”. Poucos minutos antes de o sol se pôr completamente, um grupo de aproximadamente 50 pessoas armadas com lanternas e diversos objetos luminosos subiram as escadarias do parque que ficam ao lado do ponto de ônibus.

A resistência primeira era a escuridão, que ia chegando rapidamente. Dentre as afetações mais diversas, havia uma ansiedade em conhecer o morro, de experimentar estar naquele espaço em uma experiência que só tornou-se possível por ser realizada coletivamente devido principalmente ao medo. E com o espírito de que “unidos somos fortes”, o grupo ali ficou na primeira praça do parque, primeiramente apreciando a atração musical convidada e, logo após, experimentando a “pracialidade” ou o “estado de praça” – momento maior de resistência ao medo. Queiroga explica que as pracialidades são concretudes, existências que se situam no tempo-espaço, participando da construção e das metamorfoses da esfera da vida pública (QUEIROGA apud AMARAL, 2007).

            Durante quase duas horas várias expressões artísticas puderam ser flagradas, como música, poesia, projeção de imagens, modelagem de uma escultura em argila, fotografia, malabares e performances corporais. Mas sem um modelo espetacular, as afetações aconteciam e cada um ali se expressava como podia em momentos e locais diversos da praça. Na vontade de iluminar um pouco mais, um pequeno grupo acendeu fogos de artifício, enquanto diferentes bugigangas eram utilizadas como arcos para fazer gigantes bolhas de sabão que eram logo iluminadas por várias lanternas para serem fotografadas. A escuridão parecia não conseguir engolir o grupo que vivia aquele espaço.

Adultos e crianças se divertem com as bolhas gigantes de sabão, atividade que colaborou para o rápido estabelecimento do estado de "pracialidade". Foto: Frank Busatto

            O cenário, no entanto, ainda era o mesmo. O espaço não havia sido limpo e bem no centro da pequena praça havia uma grande porção de lixo amontoado. Na beira do degrau que forma um pequeno elevado, uma espécie de palco, havia uma blusa de frio estendida no chão ao lado de uma garrafa vazia de cachaça, que compuseram o cenário e quase não foram percebidos enquanto elementos alheios: muitos se sentaram por cima da blusa enquanto papeavam ou participavam da roda de violão. Era unânime a pracialidade.

Integrantes do Coletivo À Deriva em pracialidade. Os grupos de conversa, violão, poesia e modelagem se misturam no espaço iluminado por lanternas. Foto: Raquel Mützenberg

A percepção do Morro da Luz enquanto local inseguro não afetava mais corporalmente as pessoas que ali estavam. Havia um cuidado tomado com o momento em que o grupo deveria deixar o espaço, para não entrarmos noite adentro em um local que é utilizado como “boca de fumo”. Mas os corpos experienciavam o ambiente afetados pela paz que a natureza presente no Morro da Luz trazia enquanto podia-se ver os carros na avenida em frente emanando fúria. Estávamos em uma bolha de tranquilidade no horário mais estressante do dia. Talvez uma das características mais envolventes dessa experiência foi a temperatura: o Morro da Luz abriga um microclima que é aproximadamente 4ºC menos quente que as ruas do centro de Cuiabá – considerada a capital mais quente do Brasil.

Amaral traz uma noção de percepção:

Cada um de nós ordena e nomeia aquilo que vê, que escuta e que toca através de um sistema próprio de significados. A percepção é um exercício de confronto entre diferentes sistemas e sentidos. Estas tensões produzem a necessidade da criação de um campo poético, no qual a visão de mundo particular de cada um pode se tornar questionável (AMARAL,2007).

            No que tange ao objetivo da ação de intervenção poética, pode-se afirmar que o coletivo conseguiu chegar a um momento em que houve um rompimento da percepção do espaço Morro da Luz enquanto ambiente hostil. Sentir na pele o clima mais agradável e se ver praticando a pracialidade trouxe uma noção de responsabilidade quanto à existência daquele ambiente. Estava estabelecido que no momento em que o grupo partisse, o Morro da Luz seria retomado pela marginalidade. A efemeridade de tudo o que era praticado ali estava latente durante as aproximadamente duas horas que cerca de 50 pessoas passaram no Morro da Luz, vivendo uma história diferente do cotidiano.

Dar visibilidade ao parque foi o momento clímax da percepção de um lugar que necessita a superação de um hábito para que novas dimensões e sentidos se estabelecessem. Desdobramentos desta primeira ação já aconteceram e outros estão previstos. Um primeiro grande passo já foi dado pelo próprio poder público: o parque do Morro da Luz está agora permanentemente iluminado. Aproximadamente quinze dias após a intervenção, a prefeitura de Cuiabá realizou uma manutenção no espaço, como poda de árvores e substituição das lâmpadas queimadas e quebradas. Agora, artistas e amigos do Coletivo à Deriva já propuseram futuras ocupações, como piqueniques e outra sessão de bolhas gigantes. O Morro da Luz está entregue à quem praticá-lo, e ele será o quê ele for praticado.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMARAL, Lilian. CorpoPoético: uma cartografia do lugar. 16°Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas. 2007, Florianópolis. Disponível em: < http://www.anpap.org.br/anais/2007/2007/artigos/145.pdf> . Acesso em: 18 Jun. 2014.

BRITTO, F., JACQUES, P..Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana. Fractal: Revista de Psicologia, volume 21, nº2, Set. 2009. Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/273>. Acesso em: 18 Jun. 2014.

CUIABÁ, Câmara Municipal de. Pontos turísticos: Parque Municipal Morro da Luz - Antonio Pires de Campos. Disponível em:<http://www.camaracba.mt.gov.br/index.php?pag=tur_item&id=32>. Acesso em: 18 Jun. 2014.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. E-book digitalizado por Coletivo Periferia e eBooks Brasil, 2003. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf>. Acesso em: 18 Jun. 2014.

JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. IV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 2008, Salvador. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165>. Acesso em: 18 Jun. 2014.

MORRO da Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>. Acesso em 18 jun. 2014.

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