Raquel Mützenberg
“O espaço público e a
experiência artística constituem, assim,
aspectos da vida humana cuja dinâmica tanto promove quanto resulta dos modos de
articulação entre corpo e seus ambientes de existência”.
(Fabiana Dultra Pinto e Paola Berenstein Jacques)
Neste
ensaio tratarei da experiência urbano-poética “Morro de Luz”, realizada no dia
20 de maio de 2014 pelos integrantes do Coletivo À Deriva e convidados, no
Parque Antonio Pires de Campos – o Morro da Luz – em Cuiabá.
O Coletivo À Deriva atua em Cuiabá desde 2009 com as
questões relacionadas às estéticas urbanas emergentes: poéticas urbanas ou
intervenções urbanas, performances e outros, e tem uma grande conexão com a
arte e culturas contemporâneas. Essas experiências, explica a professora
provocadora do coletivo, Maria Thereza Azevedo, geram um trabalho de campo
propício para estudos relacionados às micropolíticas, às novas sociabilidades
no estar junto, à partilha do sensível, à projeção de mundos possíveis.
“Morro de Luz” é uma intervenção poética pensada e
realizada enquanto uma micropolítica de resistência à situação em que se
encontra o Parque Antonio Pires de Campos. Após intensas discussões em sala de
aula para definição da próxima ação do Coletivo À Deriva, a professora Maria
Thereza Azevedo optou por provocar os integrantes individualmente. Cada um teve
a oportunidade de se expressar como quisesse e sobre o que quisesse, as
afetações coletivas e individuais tiveram ali um momento de desabafo quase
terapêutico para a criação da futura ação coletiva. A partir de palavras
pescadas de cada discurso expresso neste momento, o Coletivo buscou um lugar na
cidade que seria a materialização daqueles sentimentos quase unânimes:
desamparo e angústias luminosas. Tínhamos, então, nosso espaço definido: o Morro
da Luz.
Envolvido por um ar de medo e desconfiança generalizado,
o Morro da Luz é um parque arborizado no coração de Cuiabá. Palco do nascimento
da cidade, passou a ser conhecido como Morro da Luz em 1928 devido à instalação
da primeira estação de distribuição de energia elétrica em Cuiabá. Hoje, a
cidade quase o engole, o envolve em concreto em todos os seus limites. Mas o
parque em si tornou-se o desamparo materializado. Apesar do nome “Morro da
Luz”, após o pôr-do-sol a escuridão assola. Não fosse apenas esta moléstia,
durante as visitas que o Coletivo realizou ao Morro da Luz antes da
intervenção, foram flagrados vestígios nas trilhas e praças do parque que
revelam os problemas que a cidade esconde por não ter melhor solução: uso e
tráfico de drogas, moradores de rua e assaltos. Entre os integrantes do
Coletivo, alguns citaram que já houve um tempo em que aquele era um espaço tranqüilo
e ponto de encontro de namorados. No entanto, a realidade comum aos integrantes
é que todos já foram vítimas ou conheciam alguém que já foi assaltado na
calçada que permeia os limites do parque – limites estes que não são isolados:
um dos maiores e mais frequentados pontos de ônibus de Cuiabá encontra-se nesta
calçada.
O medo do Morro da Luz não é apenas uma sensação coletiva
fruto de boatos. Está legitimado no site oficial da Câmara Municipal de Cuiabá
em texto sobre o parque: “Desaconselhável caminhadas pelo local, pois é área de
risco, sem policiamento” (CUIABÁ, s.d.).
Todas estas características afetam os habitantes da
cidade corpograficamente. Esperar um ônibus no ponto do Morro da Luz gera uma
tensão interna e uma atenção física diferente de estar nos demais pontos de
ônibus de Cuiabá. Frequentar o local conhecido como perigoso, apenas por
necessidade, gera uma pressa de estar longe dali e uma resistência àquele
espaço. Sem a devida atenção do poder público, o espaço deixou de existir no
imaginário dos habitantes enquanto um parque arborizado e um possível local de
lazer. O parque Morro da Luz deixou de ser vivenciado pelos habitantes, não
existem ali histórias de vida acontecendo além de fatos relacionados às suas
moléstias. Estar no Morro da Luz tornou-se sinônimo de correr um risco. O
parque perdeu a vida pois não é mais praticado enquanto parque, mas enquanto um
local esquecido.
Busco em Guy Debord o conceito de espetacularização para
aplicar à cidade de Cuiabá. O esquecimento de um parque arborizado no centro da
cidade por parte do poder público pode ser explicado como uma consequência da
espetacularização da cidade. O parque Morro da Luz não foi incluso nos planos
da administração pública enquanto um cenário para ser visto nem vivido.
Tornou-se inóspito e, com a diminuta participação cidadã - resultante da espetacularização
da sociedade como um todo, a prática corporal da cidade enquanto prática
cotidiana, estética ou artística inexistem.
A
alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da
sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele
contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes
da sua necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu
próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age
aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que
lhos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma,
porque o espetáculo está em toda parte (DEBORD, 1992, p. 26).
Ainda para Debord, o homem alienado daquilo que produz,
mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado dele. Quanto mais sua
vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela (DEBORD, 1992, p.27). O
Morro da Luz, apesar de abranger uma área de três hectares no centro de Cuiabá,
está alienado à cidade. As construções que o rodeiam lhe dão as costas, quem
espera no ponto de ônibus está sempre de costas para o parque e quem passa a pé
por ali aperta o passo à procura de outras calçadas.
Paola
Berenstein Jacques traz a noção de corpografias urbanas enquanto um conjunto de
condições interativas que o corpo sintetiza e expressa em uma corporalidade.
Partindo da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita no corpo e que
vivemos em uma sociedade espetacularizada na qual existe uma redução da ação
urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a
uma perda da corporeidade. Os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem
corpo, espaços desencarnados. O espaço só é vivo quando é vivido. E mais,
Milton Santos apud Amaral explica que o lugar é o espaço praticado. De acordo
com a prática realizada em cada espaço, este se corporaliza também, torna-se um
corpo. O Morro da Luz enquanto um lugar praticado apenas marginalmente, apesar
de sua localização geográfica, tornou-se a marginalidade cuiabana
materializada.
A
corpografia urbana de resistência se dá quando um corpo experimenta um espaço
urbano não espetacular. A intervenção realizada no Morro da Luz teve o objetivo
simples de resistir enquanto um “morro de luz”, ou seja, o morro passaria a ter
na sua existência um momento de “vida iluminada”. Poucos minutos antes de o sol
se pôr completamente, um grupo de aproximadamente 50 pessoas armadas com
lanternas e diversos objetos luminosos subiram as escadarias do parque que
ficam ao lado do ponto de ônibus.
A
resistência primeira era a escuridão, que ia chegando rapidamente. Dentre as
afetações mais diversas, havia uma ansiedade em conhecer o morro, de experimentar
estar naquele espaço em uma experiência que só tornou-se possível por ser
realizada coletivamente devido principalmente ao medo. E com o espírito de que
“unidos somos fortes”, o grupo ali ficou na primeira praça do parque,
primeiramente apreciando a atração musical convidada e, logo após,
experimentando a “pracialidade” ou o “estado de praça” – momento maior de
resistência ao medo. Queiroga explica que as pracialidades são concretudes,
existências que se situam no tempo-espaço, participando da construção e das
metamorfoses da esfera da vida pública (QUEIROGA apud AMARAL, 2007).
Durante quase duas horas várias expressões artísticas
puderam ser flagradas, como música, poesia, projeção de imagens, modelagem de
uma escultura em argila, fotografia, malabares e performances corporais. Mas
sem um modelo espetacular, as afetações aconteciam e cada um ali se expressava
como podia em momentos e locais diversos da praça. Na vontade de iluminar um
pouco mais, um pequeno grupo acendeu fogos de artifício, enquanto diferentes
bugigangas eram utilizadas como arcos para fazer gigantes bolhas de sabão que
eram logo iluminadas por várias lanternas para serem fotografadas. A escuridão
parecia não conseguir engolir o grupo que vivia aquele espaço.
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Adultos e crianças se divertem com as bolhas gigantes de sabão, atividade que colaborou para o rápido estabelecimento do estado de "pracialidade". Foto: Frank Busatto |
O cenário, no entanto, ainda era o mesmo. O espaço não
havia sido limpo e bem no centro da pequena praça havia uma grande porção de
lixo amontoado. Na beira do degrau que forma um pequeno elevado, uma espécie de
palco, havia uma blusa de frio estendida no chão ao lado de uma garrafa vazia
de cachaça, que compuseram o cenário e quase não foram percebidos enquanto
elementos alheios: muitos se sentaram por cima da blusa enquanto papeavam ou participavam
da roda de violão. Era unânime a pracialidade.
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Integrantes do Coletivo À Deriva em pracialidade. Os grupos de conversa, violão, poesia e modelagem se misturam no espaço iluminado por lanternas. Foto: Raquel Mützenberg |
A
percepção do Morro da Luz enquanto local inseguro não afetava mais
corporalmente as pessoas que ali estavam. Havia um cuidado tomado com o momento
em que o grupo deveria deixar o espaço, para não entrarmos noite adentro em um
local que é utilizado como “boca de fumo”. Mas os corpos experienciavam o
ambiente afetados pela paz que a natureza presente no Morro da Luz trazia
enquanto podia-se ver os carros na avenida em frente emanando fúria. Estávamos
em uma bolha de tranquilidade no horário mais estressante do dia. Talvez uma
das características mais envolventes dessa experiência foi a temperatura: o
Morro da Luz abriga um microclima que é aproximadamente 4ºC menos quente que as
ruas do centro de Cuiabá – considerada a capital mais quente do Brasil.
Amaral
traz uma noção de percepção:
Cada um de nós ordena e nomeia aquilo que vê, que escuta e
que toca através de um sistema próprio de significados. A percepção é um
exercício de confronto entre diferentes sistemas e sentidos. Estas tensões
produzem a necessidade da criação de um campo poético, no qual a visão de mundo
particular de cada um pode se tornar questionável (AMARAL,2007).
No que tange ao objetivo da ação de intervenção poética,
pode-se afirmar que o coletivo conseguiu chegar a um momento em que houve um
rompimento da percepção do espaço Morro da Luz enquanto ambiente hostil. Sentir na pele o clima
mais agradável e se ver praticando a pracialidade trouxe uma noção de
responsabilidade quanto à existência daquele ambiente. Estava estabelecido que no
momento em que o grupo partisse, o Morro da Luz seria retomado pela
marginalidade. A efemeridade de tudo o que era praticado ali estava latente durante
as aproximadamente duas horas que cerca de 50 pessoas passaram no Morro da Luz,
vivendo uma história diferente do cotidiano.
Dar
visibilidade ao parque foi o momento clímax da percepção de um lugar que
necessita a superação de um hábito para que novas dimensões e sentidos se
estabelecessem. Desdobramentos desta primeira ação já aconteceram e outros estão
previstos. Um primeiro grande passo já foi dado pelo próprio poder público: o
parque do Morro da Luz está agora permanentemente iluminado. Aproximadamente
quinze dias após a intervenção, a prefeitura de Cuiabá realizou uma manutenção
no espaço, como poda de árvores e substituição das lâmpadas queimadas e
quebradas. Agora, artistas e amigos do Coletivo à Deriva já propuseram futuras
ocupações, como piqueniques e outra sessão de bolhas gigantes. O Morro da Luz
está entregue à quem praticá-lo, e ele será o quê ele for praticado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AMARAL, Lilian.
CorpoPoético: uma cartografia do lugar. 16°Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas. 2007,
Florianópolis. Disponível em: <
http://www.anpap.org.br/anais/2007/2007/artigos/145.pdf> . Acesso em: 18
Jun. 2014.
BRITTO, F.,
JACQUES, P..Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana. Fractal:
Revista de Psicologia, volume 21, nº2, Set. 2009. Disponível
em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/273>. Acesso em: 18 Jun. 2014.
CUIABÁ, Câmara Municipal de.
Pontos turísticos: Parque Municipal
Morro da Luz - Antonio Pires de Campos. Disponível em:<http://www.camaracba.mt.gov.br/index.php?pag=tur_item&id=32>.
Acesso em: 18 Jun. 2014.
DEBORD,
Guy. A Sociedade do Espetáculo.
E-book digitalizado por Coletivo Periferia e eBooks Brasil, 2003. Disponível
em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf>. Acesso em: 18 Jun. 2014.
JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. IV ENECULT –
Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 2008, Salvador. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165>. Acesso em: 18 Jun. 2014.
MORRO da
Luz. Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/upload/arquivo/morro_da_luz.pdf>. Acesso em 18 jun. 2014.
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