Mirian Barreto Lellis
Como proposta de reflexão a cerca das intervenções
de urbanas estudadas na disciplina de Tópicos
Especiais em Poéticas Contemporâneas I do programa de Pós-graduação em Estudos
de Cultura Contemporânea da UFMT, ministrada pela professora Dra. Maria
Thereza Azevedo, realizamos com o apoio do Grupo Coletivo à Deriva, a vivência
de uma intervenção denominada “Morro de Luz”. Os alunos de Pós-graduação se
mobilizaram para organizar o evento e o local escolhido foi o Parque Antônio
Pires, por ser de grande importância histórica e cultural da cidade de Cuiabá o
qual, hoje, encontra-se em situação de abandono e que figura no imaginário da
população como um local “mal assombrado”.
Partindo desta perspectiva este texto propõe contar
a minha experiência nesta iniciativa, refletindo sobre a realidade do lugar,
mostrando a sua relação com o imaginário, a memória e a identidade visual do
Morro da Luz aos olhos do flâneur.
Foto: Frank César Bussato
Um pouco de História
O Parque Antônio Pires
Campos ou Morro da Luz, como é popularmente conhecido, é um parque urbano e
ícone da cidade de Cuiabá, em Mato Grosso. Está localizado na parte central da
cidade, constituído de aproximadamente três hectares de mata verde apresentando-se
como reserva de várias espécies arbóreas do cerrado como o Ipê, Jacarandá,
Jatobá, a Lixeira, entre outras.
O
Morro da luz representa parte importante da história cuiabana, uma época que
marca a chegada da modernização na cidade através da implantação de uma rede de
energia elétrica. Em 1928 instalou-se a primeira subestação da usina do Rio da
Casca, que fazia a distribuição da energia na cidade passando, assim, a
figurar na cultura cuiabana como um divisor de águas, registrando para sempre
sua importância na memória da cidade.
Olhos de flâneur: uma experiência sensorial
Quando a atividade foi proposta fui
me informar sobre o ponto escolhido para a intervenção – o Morro da Luz, já que
eu não sou de Cuiabá e não conheço muito da cultura e dos saberes locais. Primeiro
fui à internet onde pude conhecer a rota que faria para chegar ao local, bem
como um pouco da sua história. Mas não havia muitas informações e detalhes,
então fui perguntar para alguns populares e para a minha surpresa, em
unanimidade, falaram que o local era um ponto de coletivo importante porque dá
acesso a muitos bairros, mas que também era um lugar abandonado, ruim, perigoso,
até “mal assombrado” é, hoje, ponto do tráfico de drogas.
Munida da perspectiva de
Baudelaire sobre a cidade, convidei-me a fazer um exercício utilizando os
“olhos de flâneur”, ao qual institui
que a flâneur “não se nutre apenas do
que está sensorialmente sob os seus olhos, mas se apropria também, do saber
contido (...) como se eles fossem algo experimentado e vivido” (ROUNET, 1992, p.50;
cita BENJAMIN, p. 525). Sendo eu, a partir daquele momento um flâneur a praticar a flanerie pela cidade, percorrendo o
Morro com um olhar experimentado de sensações, verdades, história e imaginação.
Então, fui até o Morro para uma visita de
reconhecimento. Chegando ao local, avistei o tão popular ponto de ônibus, os
muitos cartazes pregados nas suas paredes e nos postes, anunciam a grande
quantidade de informações que por ali se fixam papéis de todos os tamanhos,
coloridos ou em preto e branco e dentre eles um ganha a minha atenção, sobre as
letrinhas ergue-se o desenho de uma flor com uma mensagem simples, desejosa e
ao mesmo tempo um desabafo: “que eu seja mais otimista”. Realmente uma
delicadeza, um pequeno gesto de alguém que ainda
acredita nas "miudezas" da vida.
Este achado me tocou
profundamente, como se estivesse preparando o espírito para o que se seguiria
ainda naquele dia.
Foto: Mirian Barreto Lellis
O ponto possui enorme
movimentação, chegada e partida de pessoas caracterizam o lugar. As faixadas,
os telhados, portas e janelas bem como os letreiros, luminosos e os semáforos
alertam e tentam ganhar a atenção dos transeuntes nessa correria desenfreada.
Os buracos na calçada, os bueiros, o burburinho dos comerciantes locais, os
carros passando num vai-e-vem frenético, os passos apressados dos pedestres sob
o sol quente, agitam a cidade e informam que monotonia não mais existe neste
local. Mas de repente, por uma fração de segundo, esse pensamento muda quando
senti o cheiro de groselha do sorveteiro do ponto de ônibus, o aroma me fez
recordar a infância, percebo que o tempo passa, a cidade muda, sofre alterações
estéticas e comportamentais, mas algumas coisas parecem permanecer atemporais,
como os sorvetes e picolés vendidos nos carrinhos ambulantes. Então, compreendendo
que a cidade é tudo para o flâneur, é
seu palco e objeto de suas reflexões, simultaneamente. “A cidade se desdobra
diante dele em seus polos dialéticos. Ela se abre diante dele como paisagem” (BENJAMIN, ANO, p. 525
in: ROUNET, 1992, p. 50).
Continuando a flanerie, observei as árvores altivas e
verdes que formavam um contraste entre os prédios comerciais do entorno,
prefigurando um contraste entre o moderno e o antigo, entre o presente e o
passado. Mais á frente tive fácil acesso ao tão difamado parque municipal por meio
de uma escada que leva e uma trilha a qual percorre todo o morro atravessando-o
de um lado ao outro. Esse antigo caminho feito para facilitar a mobilização das
pessoas no início do século XIX, permanece ainda com suas pedras irregulares
que nos faz imaginar o passado longínquo vividos em outrora, mas que hoje não
são mais utilizados com esse propósito. O espaço é realmente fresco, o vento
soprava levemente envolvendo as folhas das árvores em uma valsa constante
embalada pelo canto dos pássaros. E foi só então que me dei conta de que de
cima do morro quase não se houve o barulho frenético da cidade, dos carros, das
pessoas, á margem de uma das principais vias arteriais da cidade, Avenida da
Prainha, o coração pulsante de Cuiabá.
Entendo que os olhos do flâneur deve se ater não só para o
espetáculo, para a modernização, mas também para o que a cidade procura
esconder. Dentre
todas as sensações boas que a flanerie
me proporcionou não posso deixar de registrar a situação de abandono que
se encontra o morro, ocasionado pelo acumulo de folhas secas das árvores e
dos lixos, um odor fétido de urina que arde as narinas, denunciam a grande
quantidade de mendigos e sem tetos que vivem ali, anunciando as mazelas que
brotam da vida urbana. A falta de iluminação, corrobora para a multiplicação
de prostitutas, traficantes e usuários de drogas que frequentam o Morro, e mesmo
à luz do dia, cometem delitos aos olhos de quem quiser ver e sem repreensão
alguma das autoridades competentes. A decepção foi enorme ao observar que, um
local tão bonito e bem localizado, é, hoje, palco para a prática de crimes,
uma ironia contrastante ao seu nome: Morro da Luz, que nos remete a pensar em
algo luminoso, claro puro, mas que, atualmente, povoado pela obscuridade social,
pela marginalização, pelas bitucas de cigarros de maconha, o crack e
outras drogas.
Após esse primeiro contato,
motivada a reinventar aquele local por meio da poética urbana ou fuleragem como
institui Medeiros (2013) quando afirma que o termo “quer se instalar em todos os cantos,
recantos, meandros. Sub-repticiamente, surpreende o transeunte tornando-o
errante. A fuleragem compõe com
a cidade, com a web, com a rua, com o outro”. Eu ansiava pelo processo de criação coletiva, por meio da
errância, compondo naquele cenário novos olhares, mediando novas reflexões. Assim,
disse um até breve ao Morro da Luz.
A intervenção “Morro de Luz” foi
marcada para o dia 20 de maio de 2014, e contamos com o apoio da rede social
para mobilizar artistas e pessoas que se sensibilizaram com a causa, só pedindo a eles disposição e lanternas para iluminarmos o espaço, estigmatizado pela
sociedade como um local esquecido e marginalizado. Ao final da tarde daquela terça-feira, munida
de lanterna, me reuni aos outros intervencionistas para alterar o cotidiano,
recriar aquele espaço e reivindicar maior atenção para o morro, a fim de coloca-lo
novamente na mente e no convívio das pessoas.
Foto: Alle Rodrigues
Adotando os olhos do flâneur, subimos o Morro da Luz para levar luz aquele local. Apesar
da quantidade de lixo que ainda estava lá, não avistei os “excluídos da
sociedade”, talvez por causa da movimentação no espaço, eles tenham se sentido acuados.
O vento ainda soprava seu frescor e o sol já estava dizendo adeus, os pássaros
estavam se recolhendo e não mais se ouvia os seus cantos. Subindo os degraus de
pedras e iluminando a trilha já se ouvia o som da flauta ecoando no morro e a
cada passo dado em silêncio senti que aquela ação não era um simples caminhar, mas
um andar corporificado, performático, artístico, quebrava-se ali a resistência
e o estigma cristalizado pela sociedade ao longo dos anos. E foi uma
experiência fabulosa, com música, dança e performances, iluminados pela luz das
lanternas e as bolhas de sabão que dançavam no ar ao toque do vento, formando
ali um clima fantasioso e até em certos momentos nos lembrando das brincadeiras
de criança. Os transeuntes que passavam ali na rua eram atraídos curiosos pelas
luzes que literalmente transformou o Parque em um “Morro de luz”. Aquele dia,
aquele espaço, aquelas pessoas, tornaram-se arte.
Senti que atingimos o objetivo proposto
e por meio da fuleragem, Medeiros (2012, p.78) afirma que a “performance
de rua inscreve, escreve, escorre no corpo da cidade para aí deixar sua
cicatriz. Sinal nomadizante que torna possível uma dimensão poética”. Dessa
forma, a intervenção resultou exatamente nesse ato de marcar o espaço urbano
pela poética instituindo um marco para a mudança comportamental e estética do morro.
Acredito que Realmente modificamos aquela realidade, resignificando a paisagem,
observando e nos apropriando daquele espaço como o flâneur baudelariano do século XIX.
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Referências
BENJAMIN,
Walter, Charles Baudelaire um lírico no
auge do capitalismo, p. 185-186. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/71723847/Um-Lirico-no-Auge-do-Capitalismo-Charles-Baudelaire.
Acesso em: 12/06/2014.
ROUANET, Sergio Paulo. A cidade que habitam os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin
“trabalho das passagens”. Revista da USP, n. 15, 1992, p. 50.
MEDEIROS,
Maria Beatriz. Corpos Informáticos. Revista do Programa de Pós-graduação em
ciência da informação da Universidade de Brasília. Museologia & Interdisciplinaridade,
Vol. II, nº. 03. Brasília: Editora UNB.
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Arte, performance e rua. Revista
Artefilosofia. Ouro Preto: Editora UFOP, nº 12, ano 2012 Disponível em http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_12/%287%29Medeiros.pdf.
Acessado em 12/06/2014.
Aêêêhhh! Inaugurou o blog! hehehe
ResponderExcluirLegal a postagem, Alle, eu estava sem iniciativa do meu. Agora vou conseguir tambem. Obrigada!
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